Revolução rizomática na Internet e Ricardo Rosas

Publicado por Revista Paná em

Banksy – Londres 2005

Série Rizoma.Net 001

Ricardo Rosas foi crítico de arte e curador interessado pelas manifestações artísticas ligadas aos novos meios eletrônicos, que vão do vídeo à utilização dos recursos da Web. Rosas foi um dos principais mentores e defensores das atividades dos coletivos artísticos no Brasil. Entre as principais iniciativas de Rosas está, juntamente com Marcus Salgado, a fundação do site editorial Rizoma.net na cidade de São Paulo em 2002. O Rizoma.net teve funcionamento ininterrupto desde o ano de 2002 até o dia, 17 de abril de 2007, em que Ricardo Rosas faleceu. Apesar dos esforços de André Mesquita, de Marcus Salgado e do apoio concedido pela família de Rosas, houve descontinuidade na manutenção do sítio e atualmente ele não está mais em funcionamento. Além da atividade como editor do sítio, Rosas foi membro do midiatatica.org e organizou festivais, que reuniram arte, mídia e networks principalmente em São Paulo e no Rio de Janeiro.

Em 28 de agosto de 2002, Ricardo Rosas e Marcus Salgado expunham em mensagem aberta ao público as diretrizes de publicação do sítio Rizoma, com o intuito de se posicionar frente às iniciativas dos ciberativistas e dos artistas que até aquele momento tinham utilizado da Web como campo estratégico de difusão das transformações artísticas e estéticas:

“Agora está acionada a máquina de conceitos do Rizoma. Demos a partida com o formato demo no primeiro semestre deste ano, mas só agora, depois de calibradas e recauchutadas no programa do site, que estamos começando a acelerar. (…) Mas vamos esclarecer um pouco as coisas. Por trás de tantos nomes “estranhos” que formam as seções/rizomas do site, está nossa assumida intenção de fazer uma re-engenharia conceitual.” (ROSAS & SALGADO, Recombine, p.02)

O Sítio concebido como um rizoma, que tornaria possível a interconexão entre vários centros de ciberativismo e de ativismo artístico, propunha-se a tarefa de explicar os novos acontecimentos de nossa época sobre o impacto das tecnologias da informação e da interação digital a fim reativar a consciência crítica para a ação revolucionária na aldeia global da internet. Conforme explicam os próprios Editores:

“Mas de que se trata uma “re-engenharia conceitual”? Trata-se sobretudo de reformular conceitos, dar nova luz a palavras que de tão usadas acabam por perder muito de seu sentido original. (…) O objetivo aqui é muito mais engendrar novos ângulos sobre as coisas tratadas do que se reduzir a uma definição meramente didática. Daí igualmente a variedade caleidoscópica dos textos tratando de um mesmo assunto nas seções/rizomas. Não se reduzir a uma só visão, virar os ângulos de observação, descobrir novas percepções. Fazer pensar. Novas percepções para um novo tempo? Talvez. Talvez mais ainda novas visões sobre coisas antigas, o que seja. Não vamos esconder aqui um certo anseio, meio utópico até, de mudar as coisas, as regras do jogo. Impossível? Vai saber… Como diziam os situacionistas: ‘As futuras revoluções deverão inventar elas mesmas suas próprias linguagens’”. (ROSAS & SALGADO, Recombine, p.02).

A referência aos situacionistas não é banal, mas circunscreve o terreno da produção de novos signos e novos símbolos para explicação e intervenção na realidade. Além disso, os situacionistas são sempre mencionados quando se trata de enfatizar a indissociabilidade entre produção material e produção simbólica no capitalismo contemporâneo. Os membros da Internacional Situacionista se consideravam como continuadores dos movimentos de vanguarda do entre guerras em especial o surrealismo e tinham, ao mesmo tempo, o intuito de superar as propostas daquele movimento. Segundo Rasmussen (2004), sem repetir as falhas do Surrealismo, os situacionistas repudiavam o caráter revolucionário do inconsciente e se esforçavam para ultrapassar o mundo da arte em favor de uma posição crítica anticapitalista fora dos limites do Partido Comunista e do comunismo oficial. Consistia nisso o projeto de Debord e dos outros situacionistas, negar o inconsciente e transformar o mundo a partir de uma racionalidade maior, negar a arte para realizá-la na vida.

Se o Dadaísmo pretendia negar a arte sem realizar seu projeto de integração da arte na vida e se o Surrealismo propunha a integração da arte na vida sem negar a arte, por sua vez, os situacionistas perceberam que era preciso negar a arte para realizar o projeto de integração da arte na vida. No auge dos debates sobre arte, cultura e política, os situacionistas, principalmente a facção francesa do movimento internacional, condenou a arte moderna como extensão do processo geral de produção e de reprodução do mundo capitalista, onde tanto a cultura como a arte seriam formas mercadorias, mercadorias ideais que justificariam o valor de troca como dominante na sociedade. Nesse sentido, a arte de vanguarda participava dos processos de valorização econômica como qualquer outra mercadoria e acresce-se a isso a importância determinante das políticas de institucionalização para sua consagração social.

O exemplo mais marcante da negação da arte promovida pelos situacionistas encontra-se na pintura industrial de Pinot-Galizzio e no detournement de Asger Jorn. Galizzio pintava metros de rolos de tela (chegou a pintar rolos de tela com 70 metros) com variações do expressionismo abstrato. Telas que não podiam ser vistas na integralidade por causa do tamanho e que eram vendidas nas ruas em pedaços cortados para servir como adereços nas roupas ou para qualquer outra coisa. Com detournement, Asger Jorn propunha a radicalização do conceito de bricolagem. Jorn pintava figuras monstruosas sobre pinturas impressionistas e com isso se apropriava das imagens produzidas pela arte para produzir nova arte. Tanto Galizzio como Jorn participaram ativamente da primeira fase da Internacional Situacionista e promoveram o processo radical de questionamento sobre o legado da arte moderna (HOME, 2004, p. 55-68).

A consideração geral dos situacionistas era de que o período do Pós-Guerra tinha destruído o projeto da vanguarda entre guerras por meio da institucionalização da arte de vanguarda. Sua institucionalização foi promovida pelos novos museus de arte moderna e o sucesso da arte de vanguarda marcava ao mesmo tempo o esvaziamento de sua mensagem política revolucionária. Esse esvaziamento ocorreu pari passu com a ascensão do mercado e da sociedade de consumo conspícuo. Não só a política como as artes passaram a obedecer cada vez mais aos ditames do sistema econômico capitalista e o homem foi e é reduzido a sujeito econômico, o que significa dizer que na Era do Capital o homem se torna objeto da História.

Vários ensaios do situacionismo sobre anti-arte e sobre anti-valor foram publicados no Rizoma.net. Rizoma tal como o próprio nome indica era um sítio com terminação “.net”, em conformidade com atividades anti-valor que visava multiplicar, potencializar, replicar e promover revoluções ou iniciativas de transformação política e artística na sociedade contemporânea. Essas condições podem ser comparadas de forma modelar com as características botânicas do rizoma como a possibilidade de influência mútua entre todas as partes em oposição ao conhecimento pensado como raiz, cuja figura ilustrativa é a Árvore de Porfírio, que serve de símbolo da própria hierarquia dos conhecimentos, de uma ordem de conhecimentos primários e secundários. Definido pela alusão às características botânicas de algumas plantas, o Sítio fazia referência ao rizoma definido como elemento modelar principal da filosofia pós-estruturalista francesa e de correntes de teóricas de esquerda. Gilles Deleuze e Félix Gattari escreveram as obras O Anti-Édipo e Mil Platôs, que fazem parte da série Capitalismo e esquizofrenia, partindo da idéia da multiplicidade, do descentramento e da conexão entre várias partes para descrever as condições epistemológicas e de conhecimento na pós-modernidade.

Ainda que o Sítio tenha seu nome e conceito associado à filosofia pós-estruturalista, é preciso que se diga que o número e a gama de autores editados nas seções do Rizoma.net faziam parte de um amplo espectro de tendências autonomistas e do pensamento político de esquerda na atualidade. Nas páginas do Sítio é possível encontrar ensaios clássicos dos situacionistas, análise sobre a teoria política de Noam Chomsky até textos sobre anarquismo, pós-marxismo, Michel Foucault, Giorgio Agamben e Raoul Vaneigem, entre outros. No que se refere às artes a lista é extensa e vai de Anselm Jappe, Marcel Duchamp, Critical Art Ensemble, Jacques Rancière, Suely Rolnik, Hakim Bey, etc.

Pode-se dizer que Rizoma.net tentou promover mudanças substantivas no campo das artes e no da política. A proposta de Ricardo Rosas e Marcus Salgado era justamente incentivar a formação crítica dos leitores do site que se constrói a partir da pesquisa descentrada e aleatória da internet, visando promover o senso de realidade e a consciência plena da união entre aqueles campos da atividade humana, interligando fatos e sentidos que se apresentam de modo aparentemente aleatório:

“Pois é, (…) propomos que você navegue pelo site. Veja as coisas como uma brincadeira, pequenos pontos para você interligar à medida que lê os textos, pois as conexões estão aí para serem feitas. Nós jogamos os dados e pontos nodais, mas é você quem põe a máquina conceitual para funcionar e interligar tudo. Vá em frente! Dê a partida no seu cérebro, pise no acelerador do mouse e boa diversão!” (ROSAS & SALGADO, Recombine, p.02).

Ainda que, em termos políticos, a diretriz do Rizoma e de seu idealizador se filiasse aos impulsos revolucionários representados principalmente pelas tendências políticas de esquerda, pouca importância pode ser atribuída ao sítio quando se trata de formação de grupos políticos ou de reivindicações de movimentos sociais, restando talvez contribuição na formação de indivíduos politizados que agiam de forma independente ou espontaneísta. Pode-se até mesmo dizer que o Rizoma.net não propiciou o surgimento de movimentos sociais, mas foi ele também resultado de movimentos sociais mais amplos que uniram ativismo político com as novas condições de sociabilidade derivadas das tecnologias de interação e de difusão de informação.

Como se sabe, esse ativismo foi protagonista das principais manifestações políticas após a crise da Era Neoliberal de Ronald Reagan e de Margareth Thatcher que culminaram nos protestos antiglobalização na década de 1990. O Rizoma.net fez parte de uma série de iniciativas ousadas que mobilizaram jovens ativistas de esquerda, autonomistas, anarquistas e ultra-esquerdistas, artistas e coletivos artísticos, mais ou menos nas mesmas fileiras no campo das artes e da política nos anos de 1990 e, principalmente, nos primeiros anos de 2000. No plano internacional, as artes visuais recuperaram sua posição crítica frente ao estabelecido e ao sistema das artes na década de 1990, logo depois da farra yuppie e da inflação especulativa nos países centrais do capitalismo nos anos de 1980, que coincidiu com a volta conservadora da pintura depois da arte conceitual e elevou o preço da arte a patamares nunca antes vistos. No plano local, em ritmo descompassado, ocorreu a valorização de artistas brasileiros pelo mainstream internacional – até mesmo pelo rankeamentos da artfacts ou da kunst kompass – como pálido e retardatário reflexo da situação vivida nos Estados Unidos e nos grandes centros da arte mundial nos anos finais da década de 1990.

Para as artes, Rizoma.net significou mudança de relação com o público e com a política. O Sítio tornou-se promotor e difusor de manifestações artísticas e de intervenções culturais tanto livres de constrangimentos impostos por agentes do sistema oficial das artes como de compromissos orientados por pressões mercadológicas; isso garantiu o estabelecimento de um espaço essas manifestações e intervenções, por sua vez, eram feitas quase sempre por artistas e/ou operadores culturais que negaram a autoria individual e reafirmaram o valor do trabalho como atividade coletiva. A contribuição do Sítio na promoção e difusão dos trabalhos de coletivos artísticos foi elemento de conscientização sobre as vias de produção abertas pelas novas tecnologias e fez parte da constituição integral de um circuito paralelo, baseado na Web, para as artes no Brasil. Nesse sentido, tanto a aposta nos novos meios de produção e de difusão artística como o incentivo e o apoio para a formação de coletivos artísticos faziam parte das iniciativas para transformação do estatuto da arte e para aproximação entre público e arte sob o signo novo da politização das artes e das intervenções culturais.

Em artigo, intitulado “(Ins)urgências” e publicado na seção Artefato, Ricardo Rosas justificaria o incentivo dado pelo site Rizoma tanto aos coletivos artísticos – que negavam o estatuto convencionado das artes – como às iniciativas de intervenção no sistema cultural estabelecido porque eram oportunidades de transformação radical do mundo contemporâneo. Nesse sentido, a crítica de Rosas direcionava-se para a arte e suas instituições, sua legitimação cultural em um mundo de imagens e a sustentação pela arte e pela imagem de uma ideologia do mundo capitalista contemporâneo. Retomar a questão da morte da arte fazia sentido na medida em que a própria arte, em todas suas manifestações recentes, assumiu posição estratégica e centralidade na produção imagética da sociedade:

“Há quase meio século que se propala a morte da arte. Tal “autópsia” já teria sido dada por vários movimentos – artísticos, por contraditório que isso possa parecer – que migraram de códigos e suportes, fossem eles para a “vida”, como o fizeram situacionistas, fluxus e adeptos do happening (como antes já o haviam feito os surrealistas), fossem eles para a cultura de massas ou suportes outros que não os tradicionais nas belas-artes, conforme os padrões do século XIX. Que isso fosse um esgotamento de linguagem, como a crise da expressão no século XX pareceu transparecer, ou um resultado do estupor diante das desgraças da segunda grande guerra, de uma forma ou de outra se conectou a impossibilidade de comunicação à “morte da arte. Em que pesem todos os intermináveis debates em torno do tema, a sociedade ainda não percebeu esta morte. (…) Implodidas e desfiguradas, a pintura e a escultura se reconfiguram em fotografias, fragmentos, instalações, performances, objetos, vídeos, compostos multimídia”. (ROSAS, Artefato, p. 08).

Ricardo Rosas refuta o argumento sobre a morte da arte – apresentado até pelo menos a época do neoconcretismo e de suas derivações – baseado na negação dos suportes tradicionais e ampliação da linguagem artística em outros meios. Em outras palavras, a negação dos suportes tradicionais na arte não serve como argumento de sua morte no contexto atual em que já se constatou a mudança desses suportes (telas de vídeo e de computador, LCDs, HDs, placas de sinalização, adesivos de toda espécie de material, poliuretanos, luzes elétricas, etc.). Rosas desloca o argumento sobre a morte da arte dos suportes tradicionais para o questionamento sobre a presentificação das imagens (negação da história da arte) feito pela indústria cultural de hoje:

Que tal morte, como já dissemos, tenha passado desapercebida pela sociedade, a ponto de esta ainda a cultuar um zumbi como um deus vivo, não é nada estranho numa época em que a imagem (ou o virtual, o “simulacro” como dizem os pós-modernos) parece haver substituído a realidade. E digo “parece” por que mesmo isso é só uma aparência, e por que já nesse começo de século XXI algumas máscaras começaram a cair. Mas como assim? Não temos cada vez mais “artistas”? Não é pujante um mercado de artes que parece mais vivo que nunca, nos cadernos culturais dos jornais e revistas, nas cada vez mais numerosas exposições, bienais, e onde tudo parece correr tão bem, tão avassaladoramente normal? É que a aparente vitalidade da arte atual esconde um profundo esgotamento que não se limita à migração de códigos já plenamente digeridos, mas que abarca igualmente o estado “em suspenso” que ela mesma se encontra hoje, sua flutuação na superfície sem fundo de um hedonismo cínico, à parte qualquer idealismo, ética ou relação com a realidade mais próxima. (ROSAS, Artefato, p. 09).

Banksy – Londres 2002

Negar a arte, negar a essencialidade neutra da arte é o que move a argumentação sobre a morte da arte em Ricardo Rosas. Qual será a alternativa viável quando falamos em processo de absorção voraz de todas as manifestações do vivido pelo mercado? No estágio atual de recuperação esvaziada de linguagens e de símbolos, que foram caros à arte das vanguardas artísticas e da arte moderna? Como lidar com a evidência do uso do procedimento da colagem, do tratamento de cores e de formas, do estabelecimento de uma gramática dos elementos visuais nos softwares da Microsoft? A resposta de Rosas e dos situacionistas é a mesma: frente ao estado de coisas vigente, a negação da arte serve à realização plena da própria arte e mais ainda da vida:

Essa insurgência artística viola códigos de arte, não apenas, como faziam seus antecessores, por uma migração de linguagem para outros suportes, mas através de ações de pura desobediência civil: de vandalismo da cultura massificada da publicidade, de signos institucionais da cultura ou da arte estabelecida; da sabotagem; da prática indiscriminada do plágio, da dissolução da autoria em nomes coletivos (múltiplos); do boicote ao mercado através de “greves de arte”; e até, numa recuperação de hábitos tipicamente sessentistas, rompimentos absolutos de barreiras entre o artista e o público numa inserção total (algumas vezes desapercebida) no cotidiano. Que muitas dessas ações se confundam com ativismo, na sua acepção mais literal, não é de forma alguma gratuito, mas tampouco serve como baliza para definições etiquetáveis a serem postas nas prateleiras do supermercado das artes. Por que é justamente contra ele e contra essa lógica mercantilista que tais ações se voltam, daí a semelhança desses “agentes da subversão” com seus parentes nas ruas ou no ciberespaço: os anônimos pixadores ou os hackers, muito mais do que com o “gênio” rebelde romântico. (ROSAS, Artefato, p. 09).

O ciberativismo, os coletivos artísticos e o terrorismo cultural e político enfatizados pelas propostas de negação da arte e dos meios tradicionais da política, que servem ambos para a manutenção das relações de mercado existentes na sociedade, foram as bases de atuação política e estética do Rizoma.net no momento atual de acirramento das lutas e das contradições na produção material e simbólica do capitalismo tardio.

Marcelo Mari – Doutor em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (2006). Mestre em Arte e Produção Simbólica pela Escola de Comunicações e Artes da USP (2001)


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