A Alucinação Coletiva do Virtual

Publicado por Revista Paná em

Photo by Giu Vicente on Unsplash

Série Rizoma.Net 009

Por Jean Baudrillard

Tradução de José Marcos Macedo

A nova hegemonia elimina o tempo histórico e suprime até mesmo a possibilidade do apocalipse.

Hoje não pensamos o virtual, é o virtual que nos pensa. É essa transparência imperceptível que nos separa definitivamente do real nos é tão incompreensível quanto pode sê-lo para a mosca o vidro contra o qual ela se choca sem compreender o que a separa do mundo exterior. A mosca nem sequer imagina o que põe fim ao seu espaço. Do mesmo modo, nem sequer imaginamos o quanto o virtual já transformou, como por antecipação, todas as representações que temos do mundo.

Somos incapazes de imaginá-lo porque é da natureza do virtual pôr fim não apenas à realidade, mas também à imaginação do real, do político, do social – não apenas à realidade do tempo, mas também à imaginação do passado e do futuro ( a isso dá-se o nome , com uma boa dose de humor cínico, de “tempo real”).

Ynfrapoesya, Pedro Paulo Rocha, 2021

Ainda estamos muito longe de compreender que a entrada em cena da mídia impede a evolução da história, que a subida ao palco da inteligência artificial impede o avanço do pensamento. A ilusão que guardávamos de todas essas categorias tradicionais, inclusive a ilusão de nos “abrir ao virtual” como a uma extensão real de todos os mundos possíveis, é a própria ilusão da mosca que incansavelmente toma distância para de novo chocar-se contra o vidro.
Ainda acreditamos na realidade do virtual, apesar de o próprio mundo virtual já ter apagado virtualmente todas as pistas do pensamento. Para pôr um pouco de ordem nessa confusão, tomarei um exemplo delicado, justamente porque representa o prolongamento do fato mais assustador e incompreensível da história moderna: o extermínio e aqueles que negam sua existência, os negacionistas.

A proposição negacionista é em si mesma absurda; seu despropósito é tão evidente que a questão crucial passa a ser: por que temos que defender a verdade contra eles? Como a questão da existência das câmaras de gás pôde sequer ser formulada? Ela jamais o seria em outros tempos. Aqueles que contestam o negacionismo não se indagam sobre a própria possibilidade dessa polêmica e contentam-se com uma veemente indignação. Ora, a própria necessidade de defender a realidade histórica das câmaras de gás como uma causa moral, a necessidade de defender a “realidade” em geral com base em uma espécie de engajamento político revela muito dos descaminhos da objetividade e da mudança de registro na verdade histórica.

Eu um erro, Pedro Paulo Rocha, 2021

No tempo histórico, o evento ocorreu e as provas de fato existem. Mas não estamos mais no tempo histórico, estamos no tempo real – e no tempo real não há mais provas, sejam elas quais forem.
O negacionismo, portanto, é absurdo em sua própria lógica. Seu caráter peculiar esclarece o advento de um a outra dimensão, chamada paradoxalmente de “tempo real”, mas em cujos limites a realidade objetiva está ausente – e não apenas a realidade do acontecimento atual, mas também dos acontecimentos passados e futuros. Todos os elementos esgotam-se numa tal simultaneidade que as ações não recobram mais seu sentido, os efeitos não remontam mais suas causas e a história já é incapaz de neles ser refletida.

O tempo real é uma espécie de buraco negro onde nada penetra sem antes perder sua substância. De fato, os próprios campos de extermínio tornam-se virtuais e figuram apenas na tela do mundo virtual: todos os testemunhos, o Holocausto e o Shoah, precipitam-se, a despeito deles e a despeito de nós, no mesmo abismo virtual.
Não se diz com isso, no entanto, que, em sua sinceridade absoluta, os próprios testemunhos e os filmes (como imagens que esgotam o horror na atualidade da imagem) não contribuem para essa memória impossível : o extermínio real está condenado a um outro extermínio, o do virtual. Eis aqui a verdadeira solução final.
Exatamente nisto é que consiste a derrota do pensamento – do pensamento histórico e do pensamento crítico. Na verdade, porém, não é sua derrota: é vitória do tempo real sobre o presente, sobre o passado e sobre todas as formas de articulação lógica da realidade. Nem mesmo o futuro está a salvo no tempo real. Caberia aqui discutir a visão de Paul Virillo sobre o “Acidente final”, sobre o “Acidente dos acidentes”, o “apocalipse do virtual”, que ele vislumbra ao termo dessa evolução, ou melhor, dessa involução de nosso mundo em tempo real. Nada é mesmo certo, porém, do que esse apocalipse (até mesmo essa certeza nos escapa!).

Sonhar com o “Acidente final significa prender-se à ilusão do fim, significa esquecer que a própria virtualidade é virtual e que, por definição, seu advento definitivo, seu apocalipse, jamais será capaz de ganhar força de realidade.
Não haverá apocalipse do virtual e do tempo real porque, justamente, o tempo real aniquila o tempo linear e a duração, ou seja, a dimensão em que poderiam desenvolver-se até seu extremo limite. Não há uma função linear exponencial do Acidente, e seu termo último permanece aleatório.

Uma pessoa, Pedro Paulo Rocha, 2021

A solução radical de continuidade do real instaurada pelo virtual, a síncope ou o colapso do tempo instaurada pelo tempo real felizmente nos preserva do termo final do extermínio. O sistema do virtual, a exemplo de todos os outros, está condenado a destruir suas próprias condições de possibilidade.

Não devemos, portanto, sonhar com um apocalipse futuro, assim como não devemos nos deixar prender por uma utopia qualquer, seja ela qual for: o apocalipse ou a utopia jamais terão lugar no tempo real, pois o próprio tempo sempre lhes faltará.

Se há efetivamente uma revolução do virtual, é preciso compreender seu sentido e deduzir todas as suas consequências, mesmo se nos reservamos a liberdade de ter de recusá-lo pela raiz. Se não há apocalipse (e, virtualmente, já nos encontramos dentro dele: basta constatar a devastação de todo o mundo real), isso vale também para as demais categorias.

Casa Home, Pedro Paulo Rocha, 2021

Toda essa interrogação sobre o virtual tornou-se hoje em dia ainda mais delicada e mais complexa devido à extraordinária impostura que o rodeia. O excesso de informações, o bombardeio publicitário e tecnológico, a mídia, o entusiasmo ou o pânico – tudo concorre para uma espécie de alucinação coletiva do virtual e de seus efeitos. Windows 95*, Internet, as autoestradas da informação – tudo isso é consumido cada vez mais por antecipação, no discurso e na fantasia. Será esse talvez um modo de unir os efeitos em curto-circuito, fazendo-os irromper na imaginação? Disso, porém, não estamos certos. A própria impostura e a intoxicação não fazem parte do virtual? Não sabemos. Sempre a velha história da mosca que se choca contra a evidência incompreensível do vidro.

“A certeza não existe”, diz uma pichação de Nova Iorque.

“Tem certeza?”

*Nota: O texto original foi publicado em 1996

Fonte: Rizoma.Net, Folha de São Paulo e Libération, jornal de opinião diário publicado na França.


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