A saga da laqueadura

Publicado por Revista Paná em

Tentarei ser breve. Descobri que não queria ser mãe há uns dez anos. Tomava AC, fazia uso de preservativo e tudo bem. Em 2015 me tornei doula e parei o AC, não para engravidar, mas porque passei a ter mais conhecimento sobre o modus operandi do mundo e patriarcado. Tenho 35 anos e não tenho filhos.

Nunca engravidei, me preveni sempre, mas a vontade da não maternidade tomou conta de mim a ponto de eu ficar desesperada com a hipotética possibilidade de engravidar. Tomei a decisão, então, de que colocaria o DIU de cobre (não hormonal), visto que, embora a Lei me ampare, conseguir uma laqueadura poderia ser difícil. (LEI Nº 9.263, DE 12 DE JANEIRO DE 1996, que trata do Planejamento Familiar: Art. 10. Somente é permitida a esterilização voluntária nas seguintes situações: I — em homens e mulheres com capacidade civil plena e maiores de vinte e cinco anos de idade ou, pelo menos, com dois filhos vivos, desde que observado o prazo mínimo de sessenta dias entre a manifestação da vontade e o ato cirúrgico, período no qual será propiciado à pessoa interessada acesso a serviço de regulação da fecundidade, incluindo aconselhamento por equipe multidisciplinar, visando desencorajar a esterilização precoce).

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Em 2018 procurei alguns médicos. 3, para ser sincera. Uma me disse que colocaria o DIU, mas fora do convênio e cobraria mil e tantos. Desculpa, não tenho mil e tantos, ainda mais sabendo que é possível colocar pelo SUS. Não fui para o SUS porque eu queria agilidade, colocar para ontem, e acho que as coisas são morosas e burocráticas demais. Com o privilégio de ter um convênio, sabia que conseguiria com mais facilidade. Achava.

A segunda médica foi a pior experiência da minha vida. Ao chegar no consultório ela obrigava a desligar o celular. A atendente mandava desligar na frente dela e, só depois de desligado, me conduziu para a sala. Depois da consulta percebi o quão antiética ela é e o celular desligado impossibilitaria provas contra.

Durante a anamnese, atrocidades. Mencionei que queria tratar um problema x e gostaria de aproveitar para colocar o DIU ou fazer uma laqueadura. Ela disse: “Não, você precisa fazer uma constelação familiar para saber o porquê desse trauma de não querer filhos. Toda mulher nasce com o instinto materno, você deve ter algum trauma, vou te encaminhar para esse grupo aqui (grupo do qual ela fazia parte)”. Me indicou um floral (que eu não tomei por motivos de, me poupe) e enfatizou que eu não podia nem devia ir contra minha biologia. Fique estática, um ódio maior do que o que eu tinha pelo Bolsonaro, na época, tomou conta de mim. Peguei os pedidos de exame de rotina e saí, calada, incrédula, cega.

Fiz os exames e marquei consulta com outro médico, para depois de um mês. Mas, quando os exames ficaram prontos, resolvi voltar nela. Não estava satisfeita em ser tratada daquela forma e era um dever moral confrontá-la.

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Quando apresentei os exames, ela constatou a alteração que eu já sabia qual era e me recomendou outro floral. Foi a deixa que eu precisava. Saí de mim e acabei com a mulher, verbalmente. Importante enfatizar os detalhes do que eu disse: Você não se graduou para seguir protocolos não científicos para tratar problemas sérios. Eu resolvi vir até aqui porque você tem um CRM, não uma credencial na sociedade dos profissionais de terapias alternativas do Brasil, as quais não tem comprovação científica e, sequer, são reconhecidas pelo próprio CRM. A Sra. devia se envergonhar de achar que qualquer um que vem aqui é ignorante o suficiente para acreditar que um floral pode curar uma doença. A Sra. devia jogar seu CRM no lixo e pendurar placas nos postes de SP com seu telefone celular dizendo que trata doenças com chá de ervas em dez dias. Disse também algumas coisas um pouco mais ofensivas, que não quero relatar aqui porque foi no calor do momento e me envergonho (pouco), mas ela ficou branca, pasma, recuou na cadeira, se encolheu. Pronto, missão quase cumprida, visto que ainda não obtive retorno do protocolo do processo no CRM.

Fui a outro médico, dessa vez um homem. A essa altura do campeonato, pouco me importava. Depois de agendar um procedimento para tratar o problema sério, sinalizei que queria colocar o DIU, ele abriu a agenda e disse: “Quando quer colocar? É rápido e já encaminho ao convênio, dentro de poucos dias é aprovado”. Meu olho brilhou. Disse a ele: “Sabe Dr., o que eu queria mesmo era fazer a laqueadura, mas sei que vocês não fazem, né?”. Ele disse: “Como assim não fazem?”. Relatei brevemente minha experiência anterior e ele simplesmente acabou, também, com a médica (mantendo a ética de não meter muito o pau numa colega de profissão) e simplesmente acatou meu pedido. Disse ainda que, se a Lei me ampara, nenhum médico poderia se negar, “que absurdo”. Sim, ele disse isso!

Marquei os exames pré-operatórios e 4 meses depois, minhas trompas foram retiradas. Sim, retiradas. Conversamos sobre possíveis negativas do convênio e a restrição religiosa do hospital no qual fiquei internada e a opção foi registrar o procedimento como Salpingectomia, que consiste na retirada das trompas. No laudo, consta: Salpingectomia uni ou bilateral, laqueadura e endometriose (descoberta durante a cirurgia).

O convênio cobriu tudo, aprovou o pedido antes dos 60 dias protocolares, visto que a salpingectomia geralmente é realizada quando há problemas nas trompas. No caso da laqueadura, a lei obriga o cumprimento deste prazo. Como Salpingectomia é uma coisa e laqueadura é outra, embora ambas acarretem a esterilização, aprovaram seguindo o pedido médico (emergência médica).

Sei dos privilégios que tenho / tive. Mas sei também o quão penoso foi brigar com a sociedade que me infernizava pedindo filho, como se eu fosse apenas um útero. Ser Doula não significa que eu ame a maternidade. Significa que eu amo as mulheres com as quais tive o prazer de me relacionar quando vivenciavam sua experiência com a maternidade, significa que eu amo oferecer amparo emocional e informacional, para que elas tenham suas escolhas respeitadas. Ser mulher não faz de mim um caminhão de fazer filho. Então, o mínimo que eu espero é que respeitem minhas escolhas. Me submeter à laqueadura e tornar isso público é, também, um ato de resistência.

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Meu companheiro teve que assinar o termo de esterilização voluntária, como a lei obriga. Dia antes do procedimento ele perguntou: “Se eu não assinasse, o que você faria? Respondi: “Pediria para qualquer zé assinar, um namorado de amiga, um amigo, um colega. É só uma assinatura”. É escrota a necessidade de validação de um homem para isso, mas é só uma assinatura. Eu tenho a facilidade de encarar assim, visto que ele está em sintonia com o que eu penso e acredito sobre ser mulher (não faz mais do que a obrigação, vale dizer), além de eu fazer qualquer coisa para ter meu desejo e direito atendido.

Ele não fez a vasectomia porque a minha decisão não diz respeito a ele. Enquanto estivermos juntos, não teremos filhos. Se nos separarmos, ele pode buscar o que lhe for conveniente. Isso não significa que não nos protegíamos. Afinal, estamos juntos há mais de um ano e não engravidei. Não foi por providência divina, podem acreditar.

Deixo esse relato para encorajar aquelas que querem buscar esse caminho. Médicos, em geral, acreditam que são os deuses da razão. Mesmo que custe saúde mental procurar, creio que dá para achar alguns decentes.

No fim não consegui ser muito breve. Hoje faz 13 dias da cirurgia, o pós-operatório foi tranquilo, como o esperado, e estou ótima. Os pontos da videolaparoscopia cicatrizando, o útero desinchando, a vida seguindo. Eu, cada dia mais feliz pois sei que não serei morada de ninguém. Não me arrependo e faria tudo de novo, se fosse preciso. E foda-se o patriarcado.

Patricia Leone, Doula, Jornalista e ativista pelos direitos das mulheres.


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