O Espírito do nosso tempo

Publicado por Revista Paná em

Há alguns meses uma enquete curiosa foi feita por um parlamentar brasileiro, um deputado federal. Ele perguntava se a depressão era causada por doenças naturais ou por demônios. A enquete causou debates inflamados nas redes sociais. A pergunta é por si só uma tentativa de retroceder no tempo, um modo de dizer que o tempo não passou e não passará. Usando conceitos e imagens ultrapassadas, dando conotação negativa a uma situação humana, tratando de modo simplório um fenômeno extremamente complexo, afronta uma sociedade que tem uma perspectiva muito mais avançada, moderna. Depois de um momento de indignação, somos tomados por uma sensação de estranheza seguida por uma curiosidade quase científica e nos perguntamos: O que de fato está em questão? O que podemos entender, além da infeliz provocação dele, por “depressão”, “doenças naturais” e “demônios”?

                A palavra “demônios” tem origem no termo grego “daemon” que pode ser traduzido como “divindade” ou “espírito”. Não eram entidades boas ou más por si só e sim personificações de estados de humor ou consciência. Foi apenas com o passar do tempo e cristianização da cultura ocidental que este termo passou a conotação absolutamente negativa que tem atualmente. Esses “daemones” (no plural) eram as vozes mesmo que falam em nossa mente e nos influenciavam nas mais diversas decisões ou sensações cotidianas. Penso que mesmo muitos gregos entendendo o termo num sentido metafísico, nada impede que alguns o tomassem pelo sentido pragmático. Nada disso serve para perdoar o deputado, sua intenção era de afronta e reacionarismo, traços conhecidos de sua personalidade, mas nos leva a pensar se a primeira possibilidade colocada, de que seja sintoma de doenças naturais, que também é popular, não seria apenas fruto de uma outra crença. Uma crença mais moderna, sem dúvida, mas que levada por um materialismo ingênuo toma o corpo humano por uma máquina em que é o mal funcionamento de alguma peça o que justifica qualquer sintoma ou patologia. Podemos dizer que nenhuma das opções que ele nos deu é suficiente para lidar com o problema em questão. Cada uma delas nos sugere um sentido que por si só já define o modo adequado de se tratar o sintoma, mas que claramente deixam de fora diversos possíveis fatores que também podem ser os causadores do sintoma, numa postura pouco científica.

                Talvez possamos diagnosticar esse como sendo um dos grandes males da nossa época, a crença de que somos guiados pelas ciências, mas na verdade são outras forças que as controlam, mesmo da parte dos cientistas. Na própria relação entre ciências exatas e humanas vemos conflitos e contradições. A ciência não é uma crença como qualquer outra, justamente por conta de seus métodos, mas e quando não há acordo sobre o método, quando áreas inteiras são desconsideradas e seu desenvolvimento é restringido e pouco popularizado? É evidente que é a história de vida e as situações cotidianas que causam maior impacto no estado de consciência e humor das pessoas, estes fatos saltam aos olhos como os dados de um experimento em laboratório ou a coerência em demonstrações matemáticas, e que não são drogas que maqueiem os sintomas que vão de fato sanar estes sofrimentos de modo perene. Porém nos parece que este ramo da ciência, que tem por objeto a consciência e a sociedade, não tem se popularizado ou sido enaltecida como as ciências tecnológicas, pelo contrário, tem sido alvos de crescentes críticas e esforços reacionários para deturpa-las como na enquete em questão.

                Filosofia e sociologia tem sido cada vez mais menosprezadas e precarizadas nas escolas públicas, acusadas de meras ideologias por alguns. Psicologia nem mesmo é colocada como disciplina nos ensinos fundamentais e médios. Os saberes sobre a mente a sociedade são envoltos por crenças religiosas e preconceitos no imaginário popular. Uma forte censura cria diversos bloqueios que impedem a ciência de se aprofundar neste sentido e isso enfraquece a mentalidade moderna como um todo, basta ver a reação atônita das academias e mídias tradicionais diante da capacidade de formação de opinião da internet e novas rede sociais aparelhadas por forças políticas conservadoras ou conformistas. A popularização do sufixo pós, como no termo “pós-moderno” ou no “pós-verdade”, se coloca como crítico aos impasses nos métodos das ciências humanas, mas que tem implícito uma conotação reacionária, como se ao fundo nos lembrasse que um dia fomos melhores pois éramos “modernos” e tínhamos a “verdade”. Podemos com isso dizer que estamos diante da falência das ciências? Provavelmente não, mas sim do retorno de uma metafísica recalcada. Criou-se junto ao processo de modernização a expectativa de que o desenvolvimento das ciências e técnicas materialistas poderiam dar conta de todos as questões filosóficas concebíveis pela humanidade, superando completamente a necessidade de qualquer reflexão metafísica. Nada mais longe da verdade, todos os avanços das técnicas apenas nos abriram uma infinidade de novos aspectos da realidade, sem contar os dilemas éticos, insolúveis com esta postura meramente materialista. Especialistas das ciências exatas e das ciências humanas não deveriam se manter em conflito ou distanciados, precisam se manter próximos e dialogando, buscando compreender o desenvolvimento de todas as áreas, questionando sempre os elementos que talvez inconscientemente sejam tomados como verdade sem reflexão mais atenta, contando também com apoio de filósofos, para continuarem desconstruindo e reconstruindo nossa realidade com maior sabedoria. 

Marcelo Machado, cientista político pós-graduado pela PUC-SP, é pacifista e acredita na sociedade civil organizada como indutora de um desenvolvimento sustentável.

As reflexões sobre este texto geraram este ensaio fotográfico e a produção de um curta metragem, O Espíritos das Eras. Inscrevam-se em nosso canal no youtube e visitem nossas redes sociais para conferir o ensaio completo, Revista Paná no Facebook e @panarevista no Instagram

O Espírito das Eras

Roteiro e Direção
Jonatha Cruz
Marcelo Cassucci
Ruiiva Pisacane

Atuação
Nyna Zêni

Narração
Nyna Zêni

Câmera e Edição
Ruiiva Pisacane

Edição de Som
Jonatha Cruz
Lucas Melo

Figurino e Maquiagem
Jonatha Cruz
Nyna Zêni

Iluminação e Cenografia
Marcelo Cassucci
Ruiiva Pisacane

Assistente de Produção
Yago Goya

Agradecimentos
Andrea dos Santos
Camila Dias
Daisy Coelho

Uma produção Revista Paná


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