Legítima Defesa

Publicado por Revista Paná em

Um recorte sempre lembrado no debate político é aquele entre progressistas e conservadores, mas a tentativa de definir estes termos é mais difícil do que pode parecer. Os que se autodenominam dessas formas podem variar muito no que defendem, chegando a defenderem coisas semelhantes, mas de modo invertido, em locais distantes no espaço e no tempo.

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Um exemplo é o partido republicano dos EUA, que era considerado progressista em suas origens pelo apoio a industrialização e atualmente abriga diversas correntes conservadoras. Outro caso é a atual corrente conservadora que tem se manifestado aqui no Brasil, com críticos ferrenhos ao Estado, acusando-o de invariavelmente socialista e defensores de que a justiça deva ser feita com as próprias mãos através do porte de arma liberado as pessoas “de bem”. É fato que nem sempre os conservadores tem sido assim, nem nos últimos séculos, nem no aqui no Brasil, nem ao redor do mundo.

Os progressistas também costumam ser cindidos por um dilema, entre a defesa de reformas ou de revoluções e uma nova discussão interminável pode surgir na definição dos significados desses termos. Tudo isso apenas destaca a ambiguidade que essas noções podem ter. Diante disto, destes sentidos esvaziados e do modo como podem ser usados de maneira arbitrária, essas noções perdem qualquer legitimidade na justificativa de qualquer ato que seja. Devemos respeitar a autodenominação e os discursos, mas de modo algum devemos nos submeter e aceitar como legítimo qualquer ato que assim se justifique sem nenhuma outra análise ética.

É claro que cada um vai se colocar como o mais ético entre todos, mas é a definição mesmo do que é ético que se torna o centro relevante do debate e não a fidelidade a alguma autodenominação.

Ao longo da história é possível perceber que apenas conquista o poder e se mantêm nele os governantes que de algum modo sejam considerados justos por grande parte da população. Mesmo que a mídia tente nos convencer do contrário, de que a opinião pública nem sempre pode mudar o cenário político, é justamente por conta desse potencial da vontade popular que ela se esforça tanto para manipular nossas opiniões. Alguns governantes conseguiram resistir em suas posições mesmo com desaprovação popular, mas não resistem os que passam a ser considerados tiranos. Tiranos são aqueles que abusam do poder, cometem violências arbitrárias e que passam por cima da lei ou as altera em benefício próprio. Nem sempre é unanimidade esta conclusão, regimes autoritários podem durar décadas, mas com certeza é a tirania a maior causadora de rebeliões populares ao longo da história.

Portanto, a ética e também toda noção de justiça, nascem a partir da legítima defesa contra o abuso de poder. O abuso de poder se dá também através da perseguição sistemática dos opositores e do uso político do sistema judiciário, mas não só os governantes abusam do poder, qualquer um pode cometer um ato desta natureza, abusando da força em atos violentos, sendo a violência apenas justificável como direito de defesa daqueles que são atacados mesmo sendo inocentes ou por terceiros que atuem em suas proteções. Porém, neste ato de defesa é preciso se manter uma certa proporcionalidade, mesmo na luta contra a tirania, sobre o risco de se perder a legitimidade diante da opinião pública.

Alguns podem denunciar que essas concepções não levam em conta a atual desigualdade que decorre de violências anteriores e acumuladas, mas é justamente contra essas violências e acúmulos que devemos reivindicar o direito de defesa. Tudo isso pode se tornar muito obscuro e de difícil avaliação em nossa atual sociedade, com a disseminação de conflitos globais, acusações e agressões mútuas, mas se perdemos de vista esta perspectiva corremos o grande risco de apoiar tiranos apenas por se esconderem atrás das máscaras da tradição ou do progresso, algo que tem acontecido com frequência, mas precisa ser superado.

E para que não haja dúvida, essa argumentação não deve ser usada para defender o armamento da população, não porque não seja justo ou ético se defender de um assalto ou um assédio sexual, mas porque na prática o armamento ampliará os atos de abuso da força, de crimes com armas de fogo, de feridos por balas perdidas e de que terminem em mortes situações que poderiam até mesmo ser resolvidas em um tribunal de pequenas causas, como brigas de trânsito ou domésticas.

Marcelo Machado, cientista político pós-graduado pela PUC-SP, é pacifista e acredita na sociedade civil organizada como indutora de um desenvolvimento sustentável.


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