Batalha Espiritual

Publicado por Revista Paná em

Série Rizoma.Net 011

Por Hakim Bey

Quando o Capital se torna maior que o Capitalismo e as lutas antiglobalização vão para um nível esotérico, está na hora de revermos nossos parâmetros.

A meu ver, a legislação corporativa é baseada na velha ficção judicial do Rei de Dois Corpos. O rei individual morre, mas o Rei, a entidade, nunca morre, e certas características pertencem ao arquétipo, mas não ao mortal soberano. Por exemplo, o rei mortal não pode vender ou alienar terras – o reino em si – pertencentes ao Rei imortal. Mas o rei mortal partilha dos exclusivos direitos do seu sósia imortal, como o privilégio de conceder monopólios. Os monopólios (como a Companhia das Índias Orientais ou os monopólios chineses de sal) formaram os germes da corporação moderna. No entanto, a verdadeira corporação moderna passou a existir quando o conceito de monopólio foi desbloqueado e combinado com o conceito do corpo real em uma única entidade. Deste modo, perante a lei, uma corporação goza de muito mais privilégio e muito menos responsabilidade (“obrigações limitadas”) do que qualquer reles humano. Uma corporação pareceria mais ser uma descorporação, um ser espiritual, desencarnado, imorredouro, com vastos poderes no plano material. Parece a descrição de um demônio, não é verdade? Em um só século a legislação corporativa teve êxito em forjar um dublê oculto que faz o satanismo parecer um inofensivo hobby para empregados insatisfeitos.

A área de finanças é outra atividade altamente espiritual, enraizada no fato de que os bancos primordiais eram templos. No final do quarto milênio, templos sumérios frequentemente emprestavam dinheiro ou commodities: gado, cevada, prata – com taxas de até 33,3% ao ano. A tradição do Jubileu (presente na Bíblia), a periódica anistia de dívidas, aparece pela primeira vez na Suméria. A economia teria entrado em colapso sem tais válvulas de segurança. O banco moderno resolveu esse problema obtendo o monopólio da criação de dinheiro. A invenção de moedas na Lídia, no século XVII a.C., facilitou essa mágica. Ao emprestar (com juros) dez vezes as suas reservas, o banco simplesmente cria o dinheiro necessário para pagar as dívidas que lhe são devidas. O Federal Reserve Bank (um banco privado com um monopólio) efetivamente cunha dinheiro e o empresta ao governo. A maioria dos estados está, há séculos, em dívida com bancos privados.

A chave para tal mágica era cortar todos os elos entre as commodities (por exemplo, cevada ou prata) e o dinheiro. O dinheiro, liberto de sua âncora de bens reais, pôde flutuar para sempre, forjando a si próprio eternamente. A história do dinheiro revela uma sempre atenuada conexão com a rude materialidade, até que em 1973 o (altamente mágico) elo com o ouro foi dissolvido pelo alquimista Nixon. Neste ponto, o dinheiro começou uma apoteose selvagem espiralada que ainda perdura. Hoje, mais de 95% de todo o dinheiro não tem qualquer conexão real com nenhuma substância material. Não se trata de capital produtivo, mas capital “puro” – não riqueza, apenas dinheiro. Dinheiro gera dinheiro, como Ben Franklin alardeou – a sexualidade do Morto. Pura espiritualidade e, entretanto, provida de um absoluto poder sobre a materialidade e a própria vida.

Dinheiro: não apenas a linha central, mas a única linha, o cercado final – o desaparecimento da Margem. Em resumo, o dinheiro é mais um demônio. A paisagem das nossas velhas e cansadas Luzes efetivamente parece assombrada por espectros (ou “hobgoblins”, como na primeira tradução inglesa do Manifesto Comunista). Corporações e bancos precisam ser compreendidos à luz da história das religiões. Estranhos fantasmas habitam a cabecinha do “neo-liberalismo” no seu triunfalismo sem controle. Precisamos de uma crítica hermética das instituições. Queremos uma ciência dos hieróglifos para nos ajudar a penetrar o transido labirinto de texto e imagem que esconde (no seu centro) o agudo não-ser das corporações e dos bancos, e a natureza puramente mágica do dinheiro.

Face, Pedro Paulo Rocha, 2021

A ideologia nos aparece agora como, ainda, outro fantasma. A ideologia nos traiu, não (como é o caso dos bancos e das corporações) ao ganhar, mas ao perder, no último milênio, a força da hegemonia paradigmática. Se a dialética vai arrancar de novo no século XXI, a ideologia não dará a partida. O movimento social precisa ser reestruturado, não apenas ressuscitado. Algo milagroso urge. Algo “impossível”.

A biotecnologia apresenta mais um apavorante cenário supernatural. Mas comida Frankenstein e bebês de seis dedos por pé, ou qualquer possível fracasso da manipulação genética me assusta muito menos do que seus atuais êxitos. Em um mundo no qual toda decisão feita pela ciência é determinada (pré-determinada) por “interesses-dinheiro” (por exemplo, o interesse do dinheiro e o interesse no dinheiro), tem-se um mundo no qual a ciência e a humanidade não têm sequer um interesse em comum. Quem, exatamente, será “beneficiado” com o iminente fim da reprodução humana tal como a conhecemos? Quais 3% do mundo vão se parecer com estrelas de cinema/TV (que já se parecem com mutantes) – e quais 97% se assemelharão a graduados fracassados da Escola do Terror de Chernobyl?

E por que os americanos parecem se importar tanto com a quem pertence cada pedaço de música gravada (gravações que nada mais são do que tumbas digitais de performances uma vez vivas) e tão pouco com a quem pertence o “copyright intelectual” do DNA do, digamos, arroz? A bioengenharia aliada ao Capital Puro já remodelou nossa realidade viva; as “aplicações assassinas” e “genes terminais” são meros detalhes. Este é o futuro; estamos vivendo nele agora. E nenhum escritor de ficção científica o previu.

Nada está acontecendo. Enquanto escrevo, temos uma situação presidencial schrodingeresca aqui nos Estados Unidos. Não podemos botar a água fora porque haveria o risco de matar, ao jogar junto o bebê; mas não podemos não jogar fora a água suja. Sempre há fatias mais e mais finas de irrealidade. O que você vê acontecendo é o que está efetivamente acontecendo – isto é, nada. Nenhuma conspiração, nenhuma profundidade, nenhuma ilusão. Não há nada escondido, nenhum dado deixa de ser processado. Toda a informação, todo o tempo; superfície infinita e profundidade micrônica. Toda a luz, nenhuma sombra.

O intermediário para esse êxtase de informação é, claro, a mídia. Unificada em escala global pela primeira vez desde que a escrita foi inventada, há cerca de seis mil anos, toda a mídia – TV, rádio, cinema, imprensa, internet, produtos de imagem, educação, música – propaga a mesma mesmice, a mesma avidez histérica por um ainda-menos-sedutor fetichismo, a mesma tela fina sobre um abismo de tédio. E o tédio em si é a débil cortina que mal contém nosso terror, nossa raiva, nossa vergonha. Fatias mais e mais finas. “Mídia alternativa” significa uma coisa que não pode competir no mercado livre. Governos não estão mais interessados em subsidiá-la e, na realidade, ela tem uma influência quase nula em relação àquilo que passa como consenso. Toda a atividade de uma vanguarda depende da existência de uma Margem para a qual ela tenta se dirigir. Mas não há mais Margem. Apenas fracasso. Precisamos fazer do fracasso nossa Margem?

Marx, Pedro Paulo Rocha, 2021

Isso constituiria uma maneira de renúncia e até de ascetismo: o não conhecimento deliberado ou a recusa do conhecimento. Os monastérios das Idades Médias eram pontos de luz em um mapa de escuridão sepulcral. A crise da epistemologia foi superada por ter sido mantido secreto o conhecimento. Talvez nestas Épocas Iluminadas precisemos de monastérios de escuridão para nos limpar e preservar nossos últimos segredos até que o dia sem fim da praga tenha passado. Se passar. O que é certamente um convite ao desespero. Mas não vejo nenhuma maneira de evitar o labor da negatividade. Se não os monastérios, então… a horda bárbara.

O Primeiro Mundo e o Segundo Mundo fracassaram; o Capitalismo morreu no mesmo momento que o Comunismo. Apenas o Capital Puro sobrevive. Não há Terceiro Mundo e não há Terceira Via. De um lado, a humanidade; do outro, o dinheiro. Não se trata mais apenas de uma questão de mera tática, “molecular”, ou seja, o que for. Conceitualmente isso é confrontação, estratégia, guerra.

Mas como se trava uma guerra contra entidades desencarnadas? Magia negra malasiana? Exorcismo? Provavelmente em vão. Poderia existir alguma forma de batalha passível de ser travada no plano invisível? Uma resposta em forma de guerrilha à Guerra Pura do Puro Capital? Uma estratégia, sim – mas qual? Como Frederick Jameson diz, parece ser “impossível imaginar uma alternativa” ao Capital. Talvez tenhamos menos necessidade de um novo Marx ou Kropotkin, e mais de um novo Von Clauswitz ou um Sun Tzu.

Não posso deixar de pensar que, de um jeito ou de outro, o ludismo ainda tem um papel. Os ludistas originais não eram primitivistas, queriam uma tecnologia que pudesse apoiar as relações sociais, e não as destruir em nome do lucro e/ou eficiência. Aquilo que costumávamos chamar de “tecnologia apropriada” nos anos 60 e 70. Na intoxicação da internet e outras maravilhosas novas tecnologias, muitos radicais parecem ter abandonado seu velho comprometimento com noções “destruidoras de máquinas”, como a de es renováveis, biodiversidade ou responsabilidade da ciência. Não é a teoria, mas a experiência pessoal que força em mim a impressão de que as “melhores mentes” da era curvaram-se em frente à Tela, perdidas no ciberespaço, transidas na crença de que o que lá acontece está verdadeiramente acontecendo. E, no entanto, o Mercado já está entediado com seus novos brinquedos; a NASDAQ treme, e até as ações de biotecnologia parecem entorpecidas. Nada acontece – exceto ondas de operadores mortos caindo como folhas de outono. Entediante, entediante. Nem mesmo o dinheiro ainda é interessante.

Apesar do fato de que ludismo é historicamente um movimento de esquerda, alguns ideólogos despacharam-no como reacionário por não ser um movimento “progressista”. De fato, se “Esquerda” requer as Luzes e sua “cruel instrumentalidade da Razão” (ou seja, não racionalidade, mas racionalismo), se “Esquerda” implica a cultura de um só mundo baseada na máquina e nas suas necessidades, então, alguns podem dizer que é chegada a hora de se posicionar “além da Esquerda e da Direita” e até de procurar por aliados entre outros ditos reacionários. É difícil encontrar um terreno comum com a Esquerda hoje em dia porque é difícil localizar qualquer Esquerda que seja. (O Partido Verde não conta; não tem o Partido Verde uma crítica coerente do Capital?). Um pouco de Esquerda seria ótimo.

Diabos, até o “jovem” Marx parece bom, agora que todos os velhos marxistas estão mortos. Quanto à Direita, será possível que existam alguns verdadeiros conservadores que não sejam racistas, chauvinistas, nacionalistas, apólogos do neoliberalismo, fascistas da moda e nem diabolistas heavy metal? Conservadores interessados na conservação de coisas como a vida selvagem e fazendas, valores humanos, comunidade e outras virtudes fora de moda do tipo? Talvez, tanto a Esquerda quanto a Direita sejam categorias vazias, conjuntos vazios. Pode a biofilia unir os humanos contra a antibiose frígida da maquinaria do Capital? Tenho minhas dúvidas, mas estou tentando resolvê-las e achar uma saída para o desespero. Enquanto isso, poderíamos, finalmente, esquecer a antiga tribuna da Assembleia Francesa e simplesmente dirigirmo-nos a nós mesmos, em vez de nos dirigirmos àqueles remanescentes que ainda sentem que a humanidade é algo mais do que um nicho de mercado a murchar?

Conforme Paul Virilio, um globo unido por uma tecnologia, uma economia, uma Imagem, tornou-se um ambiente ideal para Um Grande Acidente. Talvez já tenha acontecido: o fracasso da Ideologia, o movimento do social – o final, até mesmo, do Espetáculo e sua substituição pelo desviante Simulacro. Se não o fim da História, então a idéia do fim da idéia de História. Teologia e materialismo, ambos na lixeira: física e metafísica igualmente – 6.000 anos de imiserabilismo – culminando na vitória desses “outros corpos”, alienígenas e inumanos, demônios de nosso vazio interior. Qualquer estratégia de resistência então – por mais “impossível” – teria que desenvolver um tipo de empirismo bruto capaz de transcender a falsa consciência, tanto do materialismo, quanto do imaterialismo. Esse processo de descoberta pode fornecer tarefas úteis para aqueles monastérios de sombras onde a crítica hermética e a teoria hieroglífica serão estudadas – tarefas tanto de negação, quanto de criação.

Sem nome, Pedro Paulo Rocha, 2021

No meu ponto de vista, religião e espiritualidade são duas coisas diferentes. A religião na Suméria e no Egito apropriou-se da espiritualidade do xamanismo e do paganismo neolítico. A religião usou seu suposto monopólio da graça para reforçar a exclusão e a hierarquia. Sob essa ótica, a ideologia pode parecer simplesmente tão secularizada quanto a teologia, já que seu resultado final é o mesmo. A espiritualidade (por falta de uma palavra melhor) me atinge como uma coisa empírica, já que – como muitos outros – eu a experimentei através de plantas e químicos psicotrópicos, e por outros meios não menos naturais ou não-naturais. Acho interessante que o Capital Global pareça incapaz de digerir e “commoditificar” as “plantas do poder” e produtos da fantasia; além das vantagens econômicas da guerra das drogas permanece um resíduo de histeria psíquica quanto à repressão que, de algum modo, sugere que o poder real está em perigo. E o poder real é raro fora da esfera do dinheiro. Deveríamos prestar atenção aos fluxos de poder esotérico. Precisamos de toda e qualquer vantagem.

Uma resistência baseada no empirismo, me parece, terá que considerar a aparente atualidade do espírito. Neste ponto, devo admitir que estou esperando por um sinal, como um profeta menor do Velho Testamento. Não posso prever, mas tenho a sensação de que esse sinal envolverá, de algum modo, aquilo que estou chamando de espiritualidade. Por esta razão espero que o sinal apareça não nos Estados Unidos ou em qualquer outra das “zonas incluídas”, mas talvez naquilo que costumava ser chamado de Quarto Mundo, o mundo das tribos, guardas florestais e camponeses (e xamãs e pagãos), as zonas excluídas onde as principais batalhas do Capital Global estão sendo travadas. Se tanto a religião como a ideologia nos traíram, então o sinal não pode tomar a forma de religião ou de ideologia. De algum modo, o sinal combinará elementos de diferença e também de solidariedade, e apresentará uma real oposição à mesmice assim como à exclusão. Parece um tanto paradoxal e, consequentemente, sugere a espiritualidade do sinal. Sobretudo eu acredito que o sinal despontará espontaneamente e que ele não pode ser preparado em um exercício intelectual ou em um trabalho artístico. E absolutamente não tenho a menor idéia do que será. Ou se será.

O que significa isso tudo em termos de estratégia possível – ou até tática – “depois de Seattle”, etc, etc? De que forma esta “espera por um sinal” se relaciona com a luta contra a OMC, o FMI, o World Bank, o NAFTA, o GATT, as grandes corporações, os superfundos, para não mencionar os velhos inimigos de sempre, como governos e exércitos, e novos e ambíguos inimigos, como as ONGs?

Eu gostaria de fazer um apelo à teoria, o que de modo algum implica ideologia. “Theoria” originalmente significa “visão” e inclui tanto vista como “experiência visionária”. Desde a decadência da pós-desconstrução, do pósmodernismo e do pós-tudo o mais, a teoria caiu em maus lençóis. A teoria requer agora o tipo de empirismo evocado nos parágrafos anteriores; precisa de loucura psicotrópica e também de espontaneidade. A teoria precisa, sobretudo, clarear a questão do Capital, e este é um trabalho de negação. Os protestantes de Seattle ou de Praga de modo algum estão unidos na sua compreensão do capital. O elemento reformista acredita verdadeiramente no “Capital com uma face humana” e não partilha de nenhuma linguagem comum com os anarquistas, etc. Como resultado, alianças feitas acerca das emoções da confrontação tendem a se dissolver quando questões estratégicas são levantadas. O populismo seria um fenômeno bem-vindo e pode ter algum apelo em prol da reforma e até para o capital produtivo, assim como também para a resistência. No entanto, o populismo no estilo do Partido Verde não tem futuro algum, a não ser eleições perdidas. Até que uma forma viável de populismo apareça, penso que os não-autoritários poderão, igualmente, trabalhar na afinação de sua teoria do Capital.

Outra urgência é por um real pensamento estratégico. Formas novas e não usuais do velho protesto pegaram a polícia de Seattle de surpresa, mas as ações contra as convenções Democrática e Republicana fracassaram porque essas táticas eram adivinhadas pela polícia. (As ações anticonvenção também falharam, suspeito, porque ninguém realmente se importa com política. A melhor tática teria sido a de, deliberadamente, permanecer afastado das convenções e não protestar de modo algum, mas denunciá-las como fraudes entediantes.) Cada movimento por parte das forças do Capital requer uma resposta tática da resistência, e essas novas táticas apenas podem emergir do pensamento estratégico. Von Clauswitz elementar.

Enquanto isso, como encerramento, uma salvação ao fazendeiro francês José Bové. Ele fez mais pela causa ao dirigir seu trator McDonald’s adentro do que todas as páginas de Web e todas ONGs juntas. E salve Vandana Shiva também. Ela e suas mulheres indianas são quase um “sinal” em si.

Hakim Bey

Novembro de 2000

Fonte: Revista Play


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