Enredar: A arte de organizar encontros

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Série Rizoma.Net 008

Por Luiza Helena Guimarães Ferreira

Tomando como base as redes de Comunicação Mediadas por Computador no processo de elaboração um novo imaginário construído pelo comum, enfatizamos a criação de uma estética contemporânea, gestada com base na rede de afetos, na possibilidade de confabular e no modo como fluxos de desejos emergem, organizam e transformam nossa experiência, assim como, abrem espaço para uma arte ativista, produtora de nova subjetividade, que tenciona as forças de dominação e em relação ao potencial da liberdade da sociedade.

“A democracia espinosista, o governo absoluto da multidão através da igualdade de seus membros constituintes, é fundada na ‘arte de organizar encontros’” (Hardt, 1996, p.170).

Enredados estamos todos os que cotidianamente utilizamos as tecnologias de comunicação e informação com a vontade de construir um outro modo de existir com base no afeto. Enfatizamos aqui a criação coletiva que utiliza as redes tecnológicas para produção de um imaginário com base na experimentação, no acontecimento inusitado e na troca ativa de informações; gestação de um novo poder, onde todos podem distribuir suas informações, potencializar seus desejos. Abordamos o modo como a criação coletiva vem sendo utilizada na sociedade e na arte e, como através de ações táticas as novas tecnologias de comunicação e informação podem tornar-se poderosa rede de guerra, um espaço de luta capaz de funcionar como um ponto de fuga contra os mecanismos de controle da sociedade. As redes da guerra, da vida e da arte enredam-se a outras formas de organização que vem transformando o mundo contemporâneo, e antecedem a próxima forma dominante na sociedade.

A partir das redes tecnológicas contemporâneas, de sua forma de comunicação definida eletronicamente, um novo sistema de trocas, e outros modos de criar e recriar a vida começam a se delinear na sociedade. Nos anos oitenta, a ideia de nomadismo e resistência ganha impulso com o aparecimento de tecnologias mais baratas. Surge um novo tipo de ativismo que tem origem nos movimentos de contracultura dos anos sessenta. Nos anos noventa firma-se em ações dentro de festivais de novas mídias na Europa e nos EUA, com a característica básica de fazer uso diferenciado das potencialidades da comunicação em circuitos interdependentes. Este ativismo, mídia tática como potência crítica, tem criado fluxos paralelos aos promovidas pelas grandes redes corporativas hegemônicas. Desvinculada de interesses de mercado está dá voz a todos aqueles excluídos do sistema: comunidades alternativas, dissidentes políticos, artistas de rua, minorias sociais, entre outros. É movida por questões de interesse geral e por natureza híbrida, misturando cultura popular e cultura de massa.

Combatendo nos limites da guerra de informação (infowar), a rede de guerra (netwar), julgando existir comunidades em rede capazes de comunicar e distribuir suas próprias informações, de gerar seus próprios valores, contrapõe-se a ciberguerra (cyberwar). A tática ativista está na flexibilidade de respostas, assim como no trabalho cooperativo, na mobilidade para passar de uma mídia a outra, sendo que o determinante são as conexões capazes de realizar.

A tecnologia sobre a qual se organiza a rede de guerra está voltada mais para a questões dos dispositivos de controle do que para questões da liberdade de expressão. Mas, o político e a comunicação articulam seus procedimentos em um único dispositivo sistêmico que atravessa as dimensões sociais e imateriais do capitalismo avançado, dado que se determina na produção de sentido para um mercado com contornos da própria sociedade. Trata-se da nova máquina comunicativa a serviço da produção do social, trata-se de fazer “fluir os fluxos que legitimam alguns e excluem outros” (Lazzarato e Negri, 2001, p.68).

A arte como tática captura, convoca, verifica, enreda fluxos de desejo mediados pela comunicação. O desejo é o que o agenciamento deseja que seja e traça sua linha de fuga mutante na máquina de guerra. Neste sentido toda a criação de fluxo, toda a mutação de fluxo, passa pela máquina de guerra em sua intenção de escapar aos códigos. Marca no campo social movimentos de descodificação e desterritorialização, são fugas. Deleuze introduz a noção de “conexão e conjunção dos fluxos” (p.100), sendo que a conexão marca o modo com que os fluxos descodificados e desterritorializados se contrapõem, precipitando sua fuga comum. Já a conjugação desses mesmos fluxos obstrui as linhas de fuga operando uma reterritorialização geral. Mas é exatamente o fluxo de desterritorialização que opera a conjugação dos processos, determinando a sobrecodificação e servindo de base para a recodificação. Movimentos entre micro-história e macro-história constituem um fluxo constantemente mutante operando por descodificação e desterritorialização, assegurando assim, a criação-conexão de linhas de fuga.

Movimentos de desterritorialização e descodificação propiciados pelas tecnologias de comunicação contemporâneas vêm mudando as relações entre forças de dominação e o potencial de liberdade na sociedade. A nova interface transforma a experiência e abre espaço para ações estratégicas e táticas produtoras de uma nova subjetividade. Por trás de identidades e diferenças pode existir um comum entendido como proliferação de atividades criativas. Este conceito de comum está na definição de multidão, como reconhecimento de uma nova configuração dos processos de organização de sujeitos democráticos capazes de expressar potência política. O comum produzido pela multidão é trabalho coletivo e como tal não reconhece unidade representativa. O ativista midiático encontra-se cada vez mais como portador de capacidades imateriais de produção, tendo por instrumento de trabalho o cérebro e por campo e instrumento de luta as redes e os dispositivos comunicacionais, onde expressa seu desejo, seu poder de ser, transformar e criar. O artista como ativista midiático atua em relações de poder e estabelece articulações com as redes de guerra. Atua como nômade e, por isso mesmo, no ciberespaço. Este artista ativista torna-se agente de fluxo expressivo, capaz de tomar posições frente à emergência, a urgência do acontecimento, através de mídias que melhor se apliquem, capazes de ser um “catalizador” de reações em rede, um “performer”, que flagra, captura e deflagra manifestações do pensamento, de modos de sentir e de agir. O que importa é seu papel enquanto agente na liberação de potências criativas, na conexão de elos em um fluxo paralelo, na provocação de um desejo de agir livremente na criação de uma rede de afetos. Não há como conter o processo natural de enredar esse fluxo.

Enredamento de forças criativas, livres e libertadoras que nos torne mais leves, uma rede de fluxo de valores que façam a vida mais alegre e mais expressiva da potência ativista na criação de novos valores; uma ética formada na prática, na vida conectiva, em encontros efêmeros e imateriais potencializados pela rede tecnológica de comunicação. A partir da concepção da alegria de Espinosa, alegria tem sentido ético: “é assim que a ética realiza sua força construtiva plena, com uma constituição prática do ser. A alegria é propriamente o momento que cria o por vir” (Hardt, 1996, p.179).

Para Deleuze, a potência afirmativa de agir e existir do ser corresponde a seu poder de ser afetado e revela distinções dentro do poder. Estas, no interior de nossa afetividade, são o ponto de partida para uma prática ética.

Se nossas afecções nos tornam alegres, elas aumentam nossa potência e nos tornamos mais ativos. Então, com a prática de encontros causais de corpos que se adequam a nossa natureza e, consequentemente, aumentam a nossa potência, se desenvolve a ideia do que é comum a um corpo externo e ao nosso próprio corpo: “a alegria que tem por suporte a noção comum é a alegria que retorna”. A relação compartilhada no encontro de dois corpos formando um mais poderoso, em nossa mente, torna as afecções alegres, ativas e produtivas.

Segundo Espinosa: Um corpo não é uma unidade fixa com uma estrutura interna estável ou estática. Ao contrário, um corpo é uma relação dinâmica cuja estrutura interna e cujos limites externos estão sujeitos a mudanças. Nem mesmo sabemos o que pode um corpo fazer, nem mesmo sabemos de que afecções somos capazes, nem a extensão de nosso poder.

Os agenciamentos de potência contra os dispositivos de poder numa sociedade aberta ao livre conflito e à composição do campo de forças sociais, não-hierárquicas e coletivas, organizam a sociedade de baixo para cima, a partir do plano social imanente. Constituem a prática como motor da organização social em direção aos seus limites, as suas fronteiras, compondo e descompondo conexões. O processo de agenciamento por forças sociais alegres, reinventado constantemente, é prática da multidão de corpos, um corpo social comum com base no desejo.

Este universo de corpos num fluxo contínuo e dinâmico “em movimento e repouso, em união e conflito”, diz Hardt fazer Deleuze pensar em termos de poder. Deleuze coloca a noção comum, e seu processo de agenciamento como parte de um projeto ético. Então a questão é como agenciar encontros casuais, inadequados, quase sempre tristes dos corpos e torná-los alegres, adequados, produtivos? Lopes propõe a poética do cotidiano tornado leve frente às tensões que atravessam a nossa época.

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Leveza como “uma alternativa crítica a uma estética da violência e do abjeto” (2004, p.1) Uma poética assim entendida: neste vasto panorama que vai desde a valorização do artista como uma mistura de observador, testemunha, jornalista e etnógrafo até a própria impossibilidade de representar. Para além do debate dos rumos da arte contemporânea, o mote/slogan volta do real deve ser compreendido num quadro mais amplo do que o da arte, como uma estratégia mesmo de atuação diante do mundo. (Lopes, 2004, p.3).

Deleuze, em entrevista a Negri, sugere a necessidade de voltar a pensar o conceito de utopia e repensar o conceito de fabulação bergsoniana em termos de uma nova constituição social, ou seja, a necessidade de dar a confabulação um significado político. Diz haver uma “confabulação comum às pessoas e à arte”. (Hardt,1996,p.54). A rede tecnológica, nascida da inteligência humana, impõe questões interativas múltiplas a uma sociedade de criadores livres e ativos para a possibilidade de ultrapassagem do plano da natureza e da tecnologia.

Certamente a sociedade é formada sobre a base da inteligência humana, mas Deleuze observa que não há um movimento direto entre inteligência e sociedade. Ao contrário, a sociedade é um resultado mais direto de “fatores irracionais”. Deleuze identifica o “instinto virtual” e a “função fabuladora” como forças que levam à criação de obrigação e de deuses. Essas forças, contudo, não podem dar conta dos poderes humanos da criatividade . Os caminhos inusitados percorridos pela interação máquina-homem situam-se num amplo campo de indeterminações, de temporalidades indiretas e não lineares, onde tudo pode acontecer. A sociedade amplamente permeada por redes tecnológicas inaugura a possibilidade de construir, inclusive em nós mesmo, outros modos de fazer-se, de transformar-se. A multiplicidade de forças criativas é elevada a um nível de alto poder na constituição da multidão. As novas tecnologias são o lugar da multidão, onde ela expressa a sua força, seu poder de criar e agir, onde estabelece sua ética e a estética contemporânea. Mas, Rheingold aponta a necessidade de encontrar face-a-face para estabelecer vínculos numa comunidade em rede. O desafio artístico se coloca em termos do surgimento de um estímulo imaginativo que liga a ética diretamente à estética, de uma estética do afeto, não mais uma arte de limites, de transgressão, mas de possibilidades.

Outro caminho que vem sendo explorado é o da volta ao referente como vinculado a uma comunidade ou identidade dentro da perspectiva dos Estudos Culturais. Um espaço de confabulação, uma possibilidade de encontro, habitado por corpos que se dissolvem na vida cotidiana.

Tertúlia, um trabalho que desenvolvo desde 2003 parece ter interesse, neste sentido. Abaixo faço um relato sobre como o processo vem acontecendo:

Cheguei lá do Rio Grande trazendo uma saudade, um mate amargo, uma chaleira, uma vivência…

Dia de maio de 2003 vai ter noite cheirando a querência na Tertúlia do Rés-do-Chão…

Tertúlia é um eco das vozes perdidas campo afora;

é rima sem compromisso, julgamento ou castração, onde se marca o compasso no bater do coração;

é batismo dos sem nome, rodeio dos desgarrados;

é grito de alerta dos pampas…

Tertúlia é canto sonoro sem porteira ou aramado, onde o violão e o poeta podem chorar abraçados

Assim foi o chamamento para a primeira Tertúlia. Os amigos foram chegando, a música, cantigas gaúchas repletas de intensidade afetiva, o cheiro de carreteiro no ar, vinho e o chimarrão amargo e quente como a temperatura daquela vivência, mas que pra eles causava muita estranheza.

As conversas foram se dando sobre assuntos do dia a dia do nosso meio de arte. A Tertúlia já era uma vivência artística permeada por um diálogo sensorial entre os participantes. Em sua origem é produto de um imaginário coletivo, de histórias e culturas interconectadas, é fruto da assimilação do outro, da cultura de imigrantes europeus, africanos e do índio nativo. Resultado, portanto, de um processo de vida social. Portadora em si de um devir que coloca em questão um certo tipo de relação afetiva, funcionando como agenciamento de processos de expressão, de modos de sentir, de pensar, e se expressar próprios de uma população, com suas histórias e contingências locais, para além dos contornos de identidade cultural. Celebra o acaso, a experimentação, ajudando-nos a entender de maneira crítica o comportamento dos mercados culturais sob as condições políticas, econômicas e tecnológicas contemporâneas.

Foi justamente à tecnologia que possibilitou a Tertúlia Rio-NY dentro do evento Açúcar Invertido-2, promovido pelo departamento de Artes Visuais do The Americas Society, Nova York. Aconteceu sincronicamente em NY, Japão, Rio de Janeiro, Pernambuco, Amapá e São Paulo, por telepresença e em rede tecnológica e de afeto. Um exemplo de como funcionam estes agenciamentos de processos de expressão foi o que ocorreu na Tertúlia Rio-NY: sugeri aos participantes aqui no Rio que fizessem intervenções nos lenços, parte da indumentária gaúcha, que compunham uma instalação de parede de 4 m x 10 m. Todos aceitaram. E os lenços, registros desse trabalho, foram enviados para Nova York e lá utilizados por alguns colegas em performances, inclusive de uma bailarina brasileira lá radicada, a qual se apropriou deles.

Trazer à tona às raízes da cultura gaúcha é investigar, suas forças vitais, a dinâmica subterrânea dos afetos que a movem e a conectam reunidos sob seus signos aparentes, mas portadores de um desejo de contaminação que está no âmago da alma brasileira. A Tertúlia é uma exaltação a reunião, ao hibridismo contra os purismos herdados do passado, uma postura reflexiva do momento cultural, e não um espetáculo exótico realizado com charque gaúcho e regado a vinho, o que a relegaria a mero nostalgismo ou folclorismo, como tenta a estratégia do mercado. Questiona situações limite da vida cotidiana e da arte.

Podemos ainda, segundo Lopes, a partir de Mário Perniola ver duas atitudes estéticas opostas na arte: ”uma voltada para a catarses e a desrealização; outra orientada para a experiência da realidade, pensando a arte como perturbação, fulguração, choque”. Diante deste estado de coisas ele coloca como atitudes uma arte, respectivamente, que se distancie da realidade liberando de seu peso e, “uma poética do cotidiano que não se coloque acima da vida, mas no horizonte do contingencial, do comum”.

Citando Heller, Lopes nos diz: “’É adulto quem é capaz de viver por si mesmo a sua quotidianidade, não tanto por manipular as coisas, mas por se deixar tocar, sem nelas naufragar completamente. Talvez seja este um ideal, diante do mesmo e da repetição, ser sutilmente diverso”.

Desejos na produção de subjetividade, de um processo de individuação de pessoas ou grupos perante dispositivos. Foucault sugere que os dispositivos trazem em si uma estética intrínseca aos modos de existência.

Ao propor critérios estéticos como modo de vida, está como obra de arte é também uma ética. No enredar e desenredar da vida, da tecnologia e da arte, a poética do cotidiano, do sublime no banal desponta como uma vontade afirmativa ao propor valores mais leves, os quais libertam a vida ilimitada da rede, a criatividade variável segundo as linhas de um dispositivo. O novo e o atual. Sendo que “atual não é o que somos, mas aquilo em que nos vamos tornando, aquilo que somos em devir” ( p.92). Os novos dispositivos tecnológicos de subjetivação provocam novos enredamentos, suscitam devires outros.

Os dispositivos tem por componentes linhas de visibilidade, linhas de enunciação, linhas de força, linhas de subjetivação, linhas de brecha, de fissura, de fratura, que se entrecruzam e se misturam, acabando umas por dar noutras, ou suscitar outras, por meio de variações ou mesmo mutações de agenciamento. (Deleuze, 1996, O Mistério de Ariana. p.89).

Quando a cultura é lugar de luta, a estratégia é de resistência dentro do acontecimento, no código hegemônico das representações culturais.

Passou-se da transgressão para a resistência ou interferência no presente. O programa de transgressão da vanguarda de arte, como um instrumento de transformação revolucionária, ligada à ênfase marxista tem seu foco teórico deslocado da classe para a constituição cultural da subjetividade, da identidade econômica para a diferença social. A formação social não é mais

um sistema total, mas um conjunto de práticas, por vezes antagônicas, e o cultural torna-se lugar de contestação ativista. “A importância desse reposicionamento é sugerida pelo teor metafórico (militar) de ambos os termos: vanguarda conota transgressão revolucionária das linhas sociais e culturais; resistência sugere luta imanente dentro delas ou por trás delas”.(Foster, 1996, p. 199). Deleuze em entrevista a Negri dizia que os movimentos revolucionários tanto quanto os artísticos forjam linhas de fuga que se delineiam na sociedade ampliando seus limites.

Nos movimentos entre micro e macro-história, a experimentação, a vida em relação ao entorno, os meios e as mediações nas relações de poder, são o contexto no qual as ações se fazem tática e a arte expressão política. A tática da subjetividade que emerge da análise prática do encontro entre o sujeito e a trama infinita do poder, conforme Negri: Consiste na capacidade de contrastar, ou melhor, experimentar de forma antagônica em cada ponto das estruturas de poder, as relações, os dispositivos, as tecnologias que poder põe em ação, tentando utilizar para inverter e esvaziar o próprio poder. (…) A tática é a astúcia da razão subversiva. Porém, antes de subversiva, subjetiva! (Negri, 2003, p.179).

Lazzarato e Negri indicam este período atual como sendo o da luta pelo poder feita em relação ao controle para liberação do sujeito da comunicação, determinando uma modificação nas formas de comunicação; a crítica hoje se manifesta como potência autônoma e constitutiva dos sujeitos. Sendo assim, para viabilizar um projeto de arte ativista é preciso agir sobre o poder que opera mediante controle técnico, disciplina nosso comportamento e até nossos corpos.

Hoje, os artistas ativistas, preocupados em transformar, em atuar nos processos e nos dispositivos que controlam a sociedade, agem nos limites do campo das lutas sociais e no interior dos organismos de poder na busca de um outro tipo de organização. Apesar da tecnologia ser a fronteira menos democratizada de todas as fronteiras, cada vez mais artistas ativistas serão atraídos para mídia eletrônica, pela possibilidade que lhe é oferecida de colocar em curso uma “obra” aberta, hipertextual, imprevisível, um fluxo a ser modulado. Em suas manobras táticas atuam, principalmente, sobre o povoamento da rede, fazendo uso das características de descentralização e horizontalidade, para estabelecer uma zona autônoma antes que sistemas de vigilância e controle assumam. No ciberespaço, entendido como local de habitação e não somente um lugar de comando, controle e comunicação, o desafio para o artista ativista é o de provocar um imaginário que conecte uma estética do afeto à ética, uma arte de possibilidades.

O comum visto como cooperação, singularidades proliferantes, produção de sujeitos éticos que se produzem no tempo excedente, encontra sua contrapartida no controle, na guerra ao domínio e bloqueio desta transformação. A ameaça de que cada sujeito na multidão de singularidades possa vir a representar um limite ao poder, ele opõe ação de guerra. Guerra política, produção contínua de guerra, como atividade processual, seletiva e hierárquica. Guerra menos destrutiva, voltada para organizar singularidades, instaurada, então, na relação do biopoder, na grande indústria e na produção. Não é, portanto, somente fundamento político, mas biopolítico, uma máquina produtora do social, utilizando-se de poderosos meios tecnológicos (principalmente informáticos), biológicos e químicos para produção de formas de vida.

Na constituição e organização de comunidades em redes os movimentos de luta contra o poder parecem articular poder, interesse e desejo na formação de redes, em suas ligações transversas, nos seus pontos ativos, determinando sua distribuição, (des)continuidade e situações efetivas. É uma luta de todos, sem comando centralizado, sem hierarquia e nem representação, onde a opressão se exerce, onde o poder se exerce como abuso.

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O controle não se dá somente pela exclusão, depende ainda, da sujeição. Só resiste quem tem capacidade de se constituir como sujeito, de não se submeter. O limite é definido entre quem comanda e quem obedece. Os movimentos em torno de maio de 68 de mulheres e estudantes não se assemelham a nenhum movimento revolucionário conhecido, os focos são múltiplos, heterogêneos e transversais em relação à divisão do trabalho e as divisões sociais. A definição da relação com o poder é subordinada a “constituição de si” como sujeito social. A descoberta foucaultiana da “relação para si” enquanto dimensão distinta das relações de poder e de saber, como processo de subjetivação autônoma, portanto, sem necessidade de passar pela organização constituída para se impor como força, em Marx, é conceituada de forma diferente que em Foucault, e entendida como “Intelectualidade de Massa”. Partindo daí Deleuze vai desenvolver a compreensão de como a interface comunicacional que se impõe aos sujeitos se transforma em potência. A subjetividade como elemento de indeterminação absoluta torna-se potência absoluta. Assim, o processo de produção de subjetividade se constitui alternativa a uma realidade social diferente construída no plano da potência e não do poder.

Há a articulação de uma coletividade que recusa a categoria principal, onde distintos centros agem deixando vir à tona tanto o que pode como o que não pode ser dito, nas palavras de Deleuze: “ao longo das linhas criadoras de escape (…), um animal é enxertado, um arranjo é conectado (…) saiba criar um menor em processo” (p. 232, modificado). O menor quando se liga a forças não sincrônicas é que se torna crítico no presente, podendo provocar a insurreição de elementos menores de nossa própria época (forças de oposição, revolucionárias, emergentes). Essa associação pode resistir à cultura principal, a suas apropriações, normas e história oficial.

No momento parece oportuno questionar sobre se podemos falar de cotidiano como resistência em arte hoje em dia? Ou seja, o retorno à narrativa como possibilidade de pausa, como alternativa de tirar o peso das coisas e de estabelecer um diálogo constante entre a leveza e o peso, pode tendo em vista as redes tecnológicas se constituir resistência? Ver e contar estórias e pequenas impressões no tempo em que a vida se dá, nos instantes por si mesmos, sem aprisioná-los.  Nietzsche contava repetidas vazes sobre o desejo de Fausto de querer apenas um instante no tempo, mas resgatar a narrativa é querer causas e efeitos, é busca de significado, entretanto, querer a narrativa como fenômeno estético equivale a querer indeterminação. A estética não aprisiona o significado, então, ou a vida e a arte estão em cada instante, ou não estão em lugar algum. A poética do cotidiano, do sublime no banal, realça a leveza, a pausa, a serenidade, “como uma reação contra a sociedade violenta em que estamos forçados a viver”. “Virtude fraca, mas não a virtude dos fracos…Toda serenidade requer alguma destruição anterior” de acordo com Figueredo. (Lopes, 2004, p.7). Leveza colocada em meio ao descontrole das coisas, no confabular, nos fluxos eletrônicos, no diferenciar-se diante dos acontecimentos do mundo, acolhida mesmo num instante de indeterminação. Ela integra, aceita, transforma, inventa e cria na urgência de um tempo para viver.

Isto apenas num primeiro momento contrasta bruscamente com ações como: desestruturar, desestabilizar, ampliar a imaginação alternativa com ações táticas e estratégicas contínuas, minar a estrutura social do poder.

Mas a insurreição, quando incorporada aos modos de vida, torna-se efetiva e faz-se expressão de liberdade. Negri evidencia a potência da multidão como força de produção e reprodução da vida na constituição de um antipoder. Diz ele, “se não se reconhecer o nexo, a motivação, o elo em cada estágio do antipoder corre-se o risco de esvaziar sua eficácia e entrega-lo ao poder dominante” (Negri, 2003, p.198). O antipoder não quer o poder, um poder de comando, de exploração e hierarquia. Pelo contrário, ele quer desenvolver uma nova potência de vida, de organização e de produção dentro e fora dos limites do poder, em constante tensão com o poder constituído. A conexão, o elo emerge do comum produzido pela multidão e se choca na produção do social com o poder que expropria uma parte ou todo o valor construído.

Pensar em um fluxo paralelo através das novas tecnologias torna-se inseparável de pensar um fluxo para elo, pois, em seu interior o “paralelo” antecipa, prevê, contém o “elo” que dá início à construção. A eficácia da organização das novas tecnologias de comunicação é essencial no processo de interação e de coordenação entre usuários autônomos, assim como, no alargamento constante das redes do saber e do agir comum contra a privatização do comando, da riqueza, da exploração e da exclusão. Trabalho imaterial, trabalho sem obra, sem objeto, sem valor neles mesmos, mas fonte viva de valor, produzido coletivamente em rede, nas trocas com a vida, metamorfoseando-se incessantemente no contato com o acontecimento. Mentes e corpos ao redor da comunicação, inovação produzida pela subjetividade e gestada pela cooperação na criação de um novo poder.

No Brasil as ações de mídia tática vêm ganhando corpo também através de atuações independentes e de coletivos de ativistas, como o Única Cena, Indymedia Brasil, Res-to, Latuff, Formigueiro, A Revolução Não Será Televisionada, Bijari, Áçucar Invertido, Mídia Tática Brasil, Coro, Batukação, Rejeitados e Bicicletadas entre outros. Existe uma grande produção imaterial, um fluxo autônomo, um antipoder sendo estabelecido nos meios comunicacionais. Faz-se necessário, então, pensar o elo motivador para potencializar sua eficácia, conforme Negri, para não entregá-lo ao poder dominante. Em vista das novas tecnologias de comunicação e informação, uma dinâmica de forças em constante expansão e interação está em curso na sociedade e vem dinamizando o potencial de criação de coletivos de artistas. Mas a materialidade do meio de comunicação e a do movimento corporal marcado por esse meio, implica em pensar a narrativa também como materialidade e não apenas como suporte; espaço de resistência poética e estética, de intimidade e de afetividade. O relato do vivido, a alegria propiciada por encontros de mentes e/ou de corpos, o ser/estar juntos, a vida coletiva em constante devir tem sido em alguns destes coletivos produção ética e estética.

A produção do comum, a recuperação da lentidão no presente propiciada por pessoas e suas estórias simples, imagens despretensiosas em relação a espetacularização da vida, talvez possam ser mais subversivas, mais políticas, mais táticas do que a ênfase no peso de grandes acontecimentos.

Histórias atravessadas pelas experiências cotidianas capazes de dizer algo sobre uma força indizível que está presente na leveza das estórias, das paixões despertadas pela experimentação, no contato, na conexão, no encantamento pelo mundo em que vivemos. A proposta não é de uma utopia, muito menos de fuga de uma realidade desagradável e nem tão pouco busca de perfeição é de um resgate da possibilidade de confabular.

A arte no jogo dos afetos causa estranhamento, possibilita conhecer, vivenciar, experimentar de outro modo o encontro com o mundo e com o outro. Na perspectiva aqui esboçada trata-se da possibilidade de resgatar como força criadora, o instante, o insignificante, o detalhe, a sutileza que a rápida apreensão das coisas torna imperceptível. Enredar o fluxo da vida como na democracia espinosista: “arte de organizar encontros”, mas além de organizar, hoje, de conectar encontros num campo tecnologicamente ampliado de experimentações.

Luiza Helena Guimarães Ferreira é Mestra em Tecnologias da Comunicação e Estéticas, na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ e bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), com projeto: Fluxo Paralelo: Dispositivos Comunicacionais Produtores de Desejo, sob orientação do prof. Henrique Antoun e integrante da equipe de pesquisa por ele coordenada. É artista multimídia com trabalhos em net.art, vídeo, som, performance, interferência urbana e arquitetônica, em coletivos de artistas e editora do blog http://www.urgiapontocom.blogger.com.br; email: luizahguimaraes@gmail.com.

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Fonte: Pos.ECO em Revista


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