Sedução dos Zumbis Cibernéticos

Publicado por Revista Paná em

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Série Rizoma.Net 006

Hakim Bey (Para Konrad e Marie) NYC 18 de agosto, 1997. Tradução de Danieli Moreira

Para começar, ajudaria se pudéssemos falar sobre redes em vez de sobre A Rede (Net). Apenas os mais extrópicos crentes na Net ainda sonham com ela como solução final. Pensadores mais realistas rejeitaram a cyber-soteriologia, mas aceitam a Rede como ferramenta (ou arma) viável. Eles concordariam que outras redes devem ser configuradas e mantidas simultaneamente com “a” Rede – de outra maneira, ela se torna apenas outro meio de alienação, mais envolvente que a TV, talvez, mas de qualquer maneira mais total em sua hipnose.

As outras redes obviamente incluem – primeira e principalmente – padrões de convívio e comunicatividade. Empresto este termo da frenologia do século XIX – aparentemente existe uma saliência de comunicatividade em algum lugar no crânio – mas eu o uso para significar algo como o “diálogo” de Bakhtin transposto para o registro do social; onde o convívio implica presença física, a comunicatividade pode também incluir outras mídias. Mas – como o hermetismo nos ensina – o ato positivo do significado comunicativo, seja cara-a-cara (mesmo que sem fala), ou mediado simbolicamente (por texto, imagem, etc.), é sempre confrontado por sua negatividade. Nem toda a “comunicação” comunica, mapa não é território, e assim vai. “Programas interativos” em si mesmos não têm o menor sentido entre seres vivos, mas, de fato, nenhum meio é privilegiado ou completamente aberto. Como Blake poderia dizer, cada meio tem a sua forma e o seu espectro.

O que precisamos, então, é uma “análise espectral” blakeana da Net. Uma “análise fourierista” também poderia ser útil (não Fourier o matemático, mas Fourier o Socialista Utópico). Mas estes filósofos eram verdadeiros hermeticistas, enquanto nós podemos apenas empilhar alguns fragmentos sobre o que quer que seja.

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A questão implícita: – a Net vai além do propósito de comunicatividade, e pode ser usada como ferramenta para “maximizar o potencial para o aparecimento” de situações de convívio? Ou existe um “efeito contraproducente paradoxal” (como Ilich diria)? Em outras palavras: a sociologia das instituições mostra que certos sistemas (e.g. educação, medicina) chegam a uma rigidez monopolizadora e começam a produzir o oposto do efeito pretendido (a educação estupidifica, a medicina faz adoecer). A mídia também pode ser analisada desta maneira. A mídia de massa, considerada como entidade paradoxal, se aproximou de um limite de enclausuramento total pela imagem – uma crise da estase da imagem – e do completo desaparecimento da comunicatividade. O que se julgava que tornava a Net tão singular eram os seus padrões “de-muitos-para-muitos”, tendo como implicação a possibilidade de uma democracia popular eletrônica. A Net é uma instituição, pelo menos no sentido amplo da palavra. Ela serve ao seu propósito “original”, ou há um efeito contraproducente paradoxal?

Outro padrão original dentro da Net é a sua descentralidade (sua herança “militar”); isto lançou a Net numa espécie de guerra com os governos. A Net “cruza fronteiras” como um vírus. Mas nisto a Net partilha certas qualidades com, digamos, as corporações transnacionais (“zaibatsus”) – e com o próprio Capital nômade. O “nomadismo” tem sua própria forma e espectro. Como a Nação Islâmica dos Cinco Porcento (1) coloca, “nem todo irmão é um irmão”. A molecularidade é uma tática que pode ser usada contra e a favor da nossa autonomia. Estar informado compensa. E podemos ter certeza que a Inteligência Global paga bem por sua informação; – certamente a Net já está completamente penetrada pela vigilância, cada bit de um e-mail é um cartão postal para Deus.

Os nossos exemplos favoritos do uso imaginativo e insurreicionário da Net – o Caso McLibel, o Caso da Cientologia, e acima de tudo os Zapatistas – provam que a estrutura descentralizada de muitos-para-muitos tem potencial de verdade [o McDonalds ganhou a batalha, mas parece estar perdendo a guerra – as franquias caíram em 50%!]. Ludistas que negam isto simplesmente estão se fazendo parecer desinformados – e muito mal dispostos na direção das boas causas. Os Ludistas originais não eram quebradores de máquina indiscriminados – eles tencionavam defender seus teares manuais e o trabalho em casa contra a mecanização e centralização das fábricas. Tudo depende da situação, e a tecnologia é apenas um fator numa situação complexa e envolvendo diferentes valores. Exatamente o que é que precisa ser destruído aqui?

Imagem sem nome, Pedro Paulo Rocha, 2020

O Capital Global abraça abertamente a Net por que a Net parece ter a mesma estrutura do Capital Global. Ele anuncia a Net como o Futuro Agora, e protege os cidadãos virtuais desses governos velhos e maus. Ora, a Net é mesmo o paradigma de um Mercado Livre, não? O sonho de um Libertário. Mas secretamente o Capital Global (perdoem pela falácia patética – puxa, eu não consigo parar de reificar o Capital), secretamente, o Capital Global deve estar doente de preocupação. Bilhões de dólares de investimento foram tragados pela Net, mas a Net parece agir como um astro eclipsado: – há um efeito de penumbra, mas o planeta está negro. Talvez mesmo um buraco negro. Afinal, Hawking provou que mesmo buracos negros produzem uma quantidade mínima de energia – alguns milhões de pratas, talvez. Mas essencialmente não há dinheiro circulando na Net, nem dinheiro saindo dela. Parece que a Net pode agir metaforicamente como uma “feira livre” até certo ponto (possivelmente bem mais do que já age) – mas falhou em se desenvolver como um Grande Mercado. A WWW não parece estar ajudando muito neste ponto. A “Realidade Virtual” começa a se parecer com mais um futuro perdido. IntraNets, transmissão personalizada de dados e “televisão interativa” são as estratégias propostas pelos Zaibatsus para colonizar o que resta da Net. O e-cash não parece estar dando conta.

Enquanto isso, a Net toma o aspecto não apenas de uma feira livre sem corpo, mas também de uma favela psíquica. Avatares predatórios – desinformacionistas – dados sobre trabalho escravo nas prisões americanas – cyber-estupro (violação do corpo de dados) – vigilância invisível – ondas de pânico (Pedofilia, Nazistas-na-Net, etc) – invasões massivas de privacidade – propaganda – todo tipo de poluição psíquica. Sem mencionar a possibilidade de lavagem cerebral biônica, síndrome do túnel carpal, e a sinistra presença em cinza e verde das próprias máquinas, como nos cenários dos velhos filmes de ficção científica (o futuro como design ruim). De fato, como Gibson previu, a Net já está virtualmente assombrada. Cemitérios na web para cyber-mascotes mortos – obituários falsos – Tim Leary ainda mandando mensagens pessoais – mestres ascensionados do “Heaven’s Gate” – sem mencionar a já vasta arqueologia perdida da própria Net, os níveis da Arpa, velhas BBSs, linguagens esquecidas, páginas da web abandonadas. De fato, como alguém disse na última conferência da NETTIME em Liubliana, a Net já se tornou um tipo de ruína romântica. E aqui, no nível mais “espectral” da nossa análise, repentinamente a Net começa a parecer interessante de novo. Uma pitada de horror gótico. A sedução dos Zumbis Cibernéticos. Fin-de-millenium, flores de estufa, láudano.

Como seja.

Vivemos num país em que 1% da população controla metade do dinheiro – num mundo onde menos que 400 pessoas controlam metade do dinheiro – onde 94.2% de todo o dinheiro se refere apenas a dinheiro, não a produção de qualquer tipo (exceto de dinheiro); – um país com a maior população carcerária per capita do mundo, onde “segurança” é a única indústria que cresce (fora a do entretenimento), onde uma insana guerra às drogas e ao meio-ambiente é concebida como a última função válida do governo; – um mundo de ecocídio, agronegócio, desflorestamento, assassinato de populações indígenas, bioengenharia, trabalho forçado – um mundo construído na afirmação de que o lucro máximo para 500 empresas é o melhor plano para a humanidade – um mundo em que a imagem total absorveu e sufocou as vozes e mentes de cada falante – em que a imagem da troca tomou o lugar de todas as relações humanas.

Obrak n09, Pedro Paulo Rocha, 2021

Em vez de resmungar clichês liberais sobre tudo isto – ou levantar a perturbadora questão da “ética” – permita-me simplesmente comentar como um anarquista stirneriano (um ponto de vista que ainda acho útil depois de todos estes anos): – presumindo que o mundo seja a minha ostra, eu estou em guerra pessoal contra todos os “fatos” acima, por que eles violam os meus desejos e me negam os meus prazeres. Portanto, procuro aliança com outros indivíduos (numa “união de independentes”) que partilham de minhas metas. Para os stirnerianos de esquerda, a tática favorita sempre foi a Greve Geral (o mito soreliano). Em resposta ao Capital Global nós precisamos de uma nova versão deste mito que possa incluir estruturas sindicalistas, mas não se limitar a elas. O velho inimigo dos anarquistas sempre foi o Estado. Ainda temos o Estado para nos preocupar (seguranças no Shopping universal), mas claramente os inimigos reais são os zaibatsus e bancos (o maior erro na história revolucionária foi a falha em dominar o Banco em Paris, 1871). Num futuro muito próximo haverá uma “guerra” contra a estrutura OMC/FMI/GATT do Capital Global – uma guerra de desespero claro, alimentada por um mundo de indivíduos e grupos orgânicos contra as corporações e “o poder do dinheiro” (i.e., o próprio dinheiro). De preferência uma guerra pacífica, como uma grande Greve Geral – mas realisticamente cada um deve se preparar para o pior. E o que precisamos saber é, o que a InterNet pode fazer por nós?

Obviamente uma boa revolta precisa de bons sistemas de comunicação. Neste momento, no entanto eu preferiria transmitir meus segredos conspiratórios (se eu tivesse algum) pelos Correios em vez da Net. Uma conspiração realmente bem-sucedida não deixa rastro em papel, como a Revolução Líbia de 1969 (mas na época, os grampos telefônicos ainda eram bastante primitivos). Mais do que isto, como poderíamos ter certeza que o que vimos na Net era informação e não desinformação? Especialmente se nossa organização existe apenas na Net? Falando como stirnerista, eu não quero banir assombrações da minha cabeça apenas para encontrá-las de novo na tela. Luta de rua virtual, ruínas virtuais. Não parece uma proposição vantajosa.

Mais perturbador para nós seria a qualidade “gnóstica” da Net, sua tendência à exclusão do corpo, sua promessa de transcendência tecnológica da carne. Mesmo que algumas pessoas tenham “se conhecido através da Net”, o movimento geral é rumo à atomização – “caído sozinho em frente à tela”. O “movimento” hoje presta muita atenção à mídia em geral por que o poder virtualmente nos iludiu – e dentro do speculum da Net o seu reflexo zomba de nós. A Net como substituto ao convívio e à comunicatividade. A Net como uma má religião. Parte do transe midiático. A mercantilização da diferença.

Ynfrapoesya, Pedro Paulo Rocha, 2020

À parte a crítica da Net do ponto de vista da Soberania Individual, nós poderíamos também lançar uma análise de uma posição Fourierista. Aqui no lugar de indivíduos nós consideraríamos a “série”, o grupo básico Passional sem o qual cada ser humano permanece incompleto – e o Falanstério, ou Série completa de Séries (mínimo de 1620 membros). Mas a meta permanece a mesma: – o agrupamento ocorre para maximizar os prazeres ou o “luxo” para os membros do grupo, Paixão sendo a única força viável de coesão social (de fato, nesta base nós poderíamos considerar uma “síntese” de Stirner e Fourier, em aparência polarmente opostos). Para Fourier, a Paixão é por definição incorporada; todo o “networking” é mantido via presença física (apesar dele permitir pombos-correios para comunicação entre Falanstérios). Como um místico dos números, Fourier bem que teria gostado do computador – na verdade ele inventou o “namoro por computador”, de certa forma – mas ele provavelmente desaprovaria qualquer tecnologia que envolvesse a separação física (eu creio que foi Balzac quem disse que para Fourier o único pecado era almoçar sozinho). O convívio no sentido mais literal – idealmente, a orgia. A “Atração Passional” funciona por que cada um tem Paixões diferentes: a diferença já é “luxo”. O corpo de dados, o corpo na tela, é apenas metaforicamente um corpo. O espaço entre nós – o “medium” – deve ser preenchido com Raios Aromais, zodíacos de luz brilhante (novas cores!), profusões de frutas e flores, os aromas da cozinha gastrosófica – e finalmente o espaço deve ser fechado, curado.

Outra crítica da Net poderia ser feita de uma perspectiva proudhoniana (Proudhon foi influenciado por Fourier, apesar de fingir que não foi. Ambos eram de Bezançon, como Victor Hugo). Proudhon era mais “progressista” quanto a tecnologia do que nossos outros exemplos, e seria interessante ver que tipo de papel ele teria para a Net em seu futuro ideal de Mutualismo e anarco-federação. Para ele “governo” era meramente uma questão de administração da produção e troca. Os computadores poderiam se mostrar ferramentas úteis sob estas condições. Mas Proudhon assim como Marx sem dúvida modificariam sua visão otimista da tecnologia se fossem consultados hoje da sua opinião: – a máquina como poluição social, a própria tecnologia (e por implicação o Trabalho) como alienação. Este argumento foi obviamente feito por Marxistas libertários, anarquistas Verdes, etc. – descendentes legítimos de Marx e Proudhon, como Marcuse ou Ilich. Não seria justo considerar a InterNet (nem a bioengenharia) fora desta crítica da tecnologia. O trabalho de Benjamin, Debord e mesmo Baudrillard (até que ele tenha caído exausto) torna claro que a imagem total – “a mídia” – tem um papel central nesta crítica. Proudhon questionaria a Net quanto a justiça, e quanto a presença.

Mas eu preferiria focar mais estritamente na questão da imagem. Aqui nós poderíamos retornar a Blake como nosso “martelo filosófico” (Nietzsche realmente queria dizer com isso uma espécie de diapasão), uma vez que estamos falando do ídolo, da imagem. Eu argumentaria que estamos sofrendo uma crise de superprodução da imagem. Estamos, como Giordano Bruno colocou, “acorrentados”, hipnotizados pela imagem. Em tal caso nós precisamos ou de uma dose saudável de iconoclastia, ou então (ou também) um tipo mais sutil de crítica hermética, uma liberação da imagem pela imagem. Na verdade, Blake nos supriu com ambos – ele era tanto um destruidor-de-ídolos quanto simultaneamente um hermetista que usava imagens para a libertação, tanto política quanto espiritual. Hermetistas entendem que o “hieróglifo”, a imagem/texto ou comunicação mediada (simbólica), tem um efeito “mágico”, ultrapassando a consciência racional linear e influenciando profundamente a psiquê. É por isso que Blake dizia que uma pessoa deve fazer seu próprio sistema ou então ser escravo do sistema de outros. A autonomia da imaginação é um alto valor para o hermetismo – e a crítica da imagem é a defesa da imaginação. A tela é um aspecto da imagem que não pode escapar desta “análise espectral” – a mídia como “moedores satânicos”.

Imagem sem nome, Pedro Paulo Rocha, 2020

No final das contas, parece que não há mesmo como fugir da tecnologia ou da alienação. A própria techné é prótese da consciência, e portanto inseparável da condição humana (linguagem inclusa aqui como techné). A Tecnologia como a fusão óbvia de techné e linguagem (a ratio ou “razão” da techné) tem sido simplesmente uma categoria da existência humana pelo menos desde o Paleolítico. Mas – podemos perguntar em que ponto o próprio coração será substituído por um órgão artificial? Em que ponto uma determinada tecnologia “surta” e começa a produzir uma contraprodutividade paradoxal? Se pudéssemos alcançar um consenso nisto, ainda existiria algum motivo para falar de determinismo tecnológico, ou do maquinismo como destino? Neste sentido, os antigos Ludistas merecem alguma consideração. A techné deve servir ao ser humano, não definir o ser humano.

Precisamos (aparentemente) aceitar a inevitabilidade da consciência, mas apenas na condição de que não será a mesma consciência. Suspeitamos que a consciência racional, maquínica, linear, universal, da aufkläerung, gozou durante muito tempo de uma tirania – ou “monopólio”. Não há nada de errado com a razão (na verdade nós poderíamos usar bem mais dela) mas o racionalismo parece uma ideologia fora de moda. A razão deve dividir o espaço com outras formas de consciência: consciência enteogênica, ou consciência xamânica (que não tem nada a ver com “religião” como é usualmente definida) – bioconsciência, o discernimento sistêmico do ideal hermético da terra viva – consciência étnica ou cultural, modos diferentes de ver – povos indígenas – ou os Celtas – ou o Islã – consciências de “identidade” de todos os tipos – e consciências de trans-identidade. Uma variedade de consciências parece ser a única base possível para a nossa ética.

Então, e quanto à consciência da InterNet? Ela tem seus aspectos não-lineares, não tem? Se pode existir uma “racionalidade do maravilhoso”, não há um lugar para a mente da Net no banquete?

No fim devemos nos contentar com a ambiguidade. Uma resposta “pura” é impossível aqui – iria feder a ideologia. Sim e não.

Mas – “Entre o Sim e o Não, estrelas caem do céu e cabeças voam do pescoço”, como o grande sufi Shayk Ibn Arabi disse ao filósofo Aristotélico Averróes.

Uma imagem adequada para uma ruína romântica.

Notas:

1. Facção dissidente da Nação do Islam, também conhecida como The Nation of Gods and Earths, Five Percent Nation ou Five Percenters, é um movimento social/religioso afro-americano fundado no Harlem nos anos 1960 por Clarence 13X. Combina ensinamentos de Malcolm X e da Nação do Islã e busca justiça, liberdade e igualdade social. Em que pese a aura de mistério e reputação escusa como acusações de assalto a bancos ou outros tipos de ação direta, reza a lenda que seus membros são preparados para morrer na luta contra a supremacia branca. Dela fazem parte muitos rapprs famosos, como Rakim, Brand Nubian, Nas, AZ, Nine, os Wu Tang Clan, etc.


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