Cores, Tambores e Sabores da Cena Musical Queer do Maranhão.

Publicado por Revista Paná em

Por Xerxes X.

Qualira é uma palavra utilizada no Maranhão para designar de forma pejorativa um homossexual masculino. Historicamente com a introdução da música clássica na região, os rapazes que optavam pela Lira, ficavam digamos… “delicados” ao apoiar no glúteo com dificuldade o instrumento de grande porte. E o povo maranhense, como bom debochado que é, gritava: “Lá vai ele, com a Lira”. Que no popular se tornou “coalira” até que o tempo transformou a expressão na que conhecemos hoje. Talvez por ironia, a primeira vítima de homofobia registrada no país foi no Maranhão. O indígena tupinambá Tibira em 1614 foi amarrado à boca de um canhão quando os portugueses colonizadores se chocaram com a livre expressão sexual dos indígenas daquela etnia onde “tibira” era o nome dado ao indígena homossexual, o que era comum, mas que para os portugueses era considerado sodomia.

FRIMES

Outra ironia está nos dias atuais, quando o nome maranhense mais influente vem ser de um “qualira”. Pabllo Vittar, cuja música já atravessou fronteiras internacionais é atualmente a dragqueen mais seguida do mundo nas redes sociais. Vittar é de São Luís, capital do Estado, e está no topo de um iceberg cultural. Falar da pluralidade musical e artística que escorre viva como as águas da Fonte do Ribeirão hoje em dia vai bem além do Reggae que embala a ilha desde o final dos anos 1960. Se no final da década de 1990 e começo dos anos 2000 o clube ainda denominado GLS Pedrita era um dos poucos redutos para as qualiras e fanchas, hoje o Maranhão transborda musicalidade queer e com Pabllo Vittar é um produto de exportação.

Estou do outro lado dessa corda. Sou maranhense raiz, mas tive minha construção artística em São Paulo, para onde migrei ainda criança. Tal construção se deu no underground que tinha buracos e inferninhos da região da Rua Augusta como cenário no final da primeira década do novo século. Alguns dos meus feitos além de rebolar em balcões com meias arrastões, roupas de lycra e botas de couro até o meio das coxas, foram ter sido um dos pioneiros a trabalhar com rap para abordar a problemática da homofobia e ter ganho como artista revelação no Prêmio Dynamite de 2014. Estive no centro do furacão da nova música queer de onde saíram muitas pessoas notáveis que a cada dia ganham voz e espaço na mídia. Em viagem à São Luis no final de 2017, pude conferir de perto o que ainda era a construção dessa nova safra de artistas maranhenses que se movimentam fazendo a cena local. Com isso senti a necessidade de me aproximar e me apropriar da minha própria cultura.

NATHALIA FERRO

Tive a oportunidade de conversar com alguns artistas da cena maranhense, mas quem me deu um cronograma do caminho que a cultura queer em São Luís percorreu foi o cantor Vinaa, que disse ser esta a terceira onda de um movimento que começou nos anos 2000. Os terreiros de Umbanda e Candomblé foram o berço das manifestações artísticas da comunidade LGBT. Nesse mesmo período as casas noturnas voltadas para a comunidade possibilitaram que artistas LGBT tomassem posse de “palcos apropriados para performances artísticas”. A partir disso houve o surgimento de bandas baile com cantores LGBT. Destaques desse momento é o cantor e compositor Marco Dualibe e Claudio Lima, que com dois discos lançados venceu alguns prêmios em festivais de música.

VINAA CANTANDO MENSAGENS

O cantor surgiu no cenário maranhense nos anos 2010, na segunda onda de cantores queer. Iniciou em banda baile onde num período de cinco anos fez covers de música Pop. Em uma dessas apresentações o produtor Cury Heluy, que tem Tim Maia e Marisa Monte em seu portfólio, viu Vinaa se apresentar e lhe propôs ser seu diretor artístico. “Bordel de Amianto E A Glória Dos Loucos Por Sex Appeal” foi lançado em 2017 abrindo a discografia do cantor. A faixa que abre o disco é “Moço Bonito” fala do romance entre dois rapazes de forma comovente que faz quem ouve morar na música por dias. Em três meses Vinaa vendeu mil cópias do disco e rodou o Brasil passando por doze festivais de músicas e após três anos de trabalho em 2019 lançou seu segundo disco “Elementos E Hortelã Na Terra dos Eucaliptos”. E estava tudo pronto para esta nova etapa até que a pandemia do Covd-19 jogou um balde d’agua fria nos planos de seguir sua turnê, não apenas nele, mas em todos os artistas não agraciados pelo grande fomento que torna reis as celebridades e ignora os artistas de guerrilha.

VINAA

Vinna aponta a ausência de incentivo para novas gerações de artistas, há inúmeros festivais, que formam público e lhes dão oportunidade de vitrine. Há também iniciativas de ONGs e o primeiro edital voltado para a produção musical surgiu pouco antes do início da pandemia e Vinaa foi o único selecionado, garantindo assim a produção de seu terceiro disco. Para ele “o palco está em todo lugar”. Ele diz sobre o mundo em suas canções e não será a pandemia que o impedirá de emanar sua mensagem pelo mundo.

JESUS LUNNA E A SUA SUPERAÇÃO QUE DEU ORIGEM A UMA TRAGET´ROA MUSICAL DOCE.

A musicalidade deste cenário segue pela MPB, com o nome de Jesus Lunna, a beleza trans não binária e jovem de voz doce com uma história forte e cheia de superação que transcende pelo seu repertório. Após uma violência sofrida ainda na infância recorreu por vias familiares à igreja onde teve contato com a dança. Aos nove anos já estava na dança contemporânea de onde tirou os meios necessários para aliviar os impactos da agressão sofrida e se reabilitar ao exterior de seu mundo. O que para os ouvintes de sua música foi maravilhoso, pois na adolescência ganhou um violão, entrou também em canto coral do Villa Lobos, no Liceu Maranhense onde cursou por três anos. Ao completar dezoito anos mudou-se para Joinville e cantava na igreja. De lá para cá a artista usou o Youtube como plataforma de divulgação e atingir o nível profissional de seu trabalho.

JESUS LUNNA

Quando ingressou na faculdade de Design optou por cinema e vídeo como vertente em 2017, em uma aula de vídeo foi solicitado o voluntariado para um trabalho onde áudio e vídeo seriam captados e Jesus topou. Antes disso, fez vlogs sobre sexualidade e após esse trabalho acadêmico (que viralizou na rede) deu início a uma série de vídeos caseiros que foram vistos pelo produtor Xuxa Levy, cujo projeto No Ovo tem como objetivo o lançamento de novas vozes no mercado fonográfico nacional. Após esse contato teve a oportunidade de ir a São Paulo e quando voltou já se viu totalmente envolvida com a música e mesmo concluindo sua formação em designer, sabia que a música a partir dali seria seu caminho. O Ep “Bicho Solto” lançado em 2019 é o primeiro apanhado musical da artista e mais dois singles, tudo disponível nos stramings.

O CALOR PSICODÉLICO DE GAYBRIEL

Aos dezesseis anos Gaybriel decidiu buscar a própria estética e na própria identidade se tornou um artista musical. Cursou Publicidade E Propaganda e trabalhando com fotografia as suas referências passaram a ser nomes como o de David Lachapelle. Como alguém nascido com os clássicos noventistas da Disney e a paleta berrante dos desenhos da Nickelodeon, o artista se apropriou dessa identidade visual como por exemplo em suas capas com pegada tropicalista, um sururu na casa da Barbie Girl do Acqua.

GAYBRIEL

A composição para ele veio cedo, quando aos dez anos passou a escrever poesias e três anos depois passou a musicalizá-las. Sozinho fez uma busca que conforme diz é eterna pelas melodias, tons e seu eu artístico. Demonstra ter consciência plena d que essa entrega no fazer arte é uma constante para dar o melhor a cada trampo. A música Pop é presente também desde a infância. Madonna era presença constante na vitrola da mãe, Michael Jackson no rádio do pai e seu irmão, o também cantor, Yhago Sebaz. Fora o reggae das radiolas, o brega das serestas e todos os ritmos que cobrem a ilha de São Luis de uma musicalidade bem própria.

Recentemente em parceria com Yhago e a cantora Wan Lo lançou a faixa com clipe “Baticuriá”, uma remix/regravação do artista Thierry Castelo.

TEM BONECA NO VOCAL… WAN LO E SEU POP SAFADO.

Desde criança teve o sonho de estar no palco tendo Xuxa como referência maior, tal qual toda e qualquer criança qualira dos anos 1980 e 1990. As intérpretes femininas sempre foram o ponto de apoio de Wan Lo, uma garota trans de fala amena e vocal felino e certeiro em suas faixas. Teve a sorte de sua mãe incentivar sua carreira apresentando as grandes cantoras da MPB.

WAN LO

Se movimentou fazendo coral, estudando música na escola onde montou uma banda, mas por insegurança se voltou à formação de TV. No momento em que passa a se inspirar em Britney Spears e nacionalmente em Wanessa Camargo muda os rumos de sua trajetória. O nome Wan Lo é inspirado em Wanessa, que é o grande ídolo da artista. E as duas têm uma conexão. Recém-chegada em São Paulo, Wan Lo fez uma entrevista de emprego que só no ato descobriu ser para a agência responsável pelo stylist e trabalho de marketing de Wanessa e ali por um ano pôde trabalhar e aprender diretamente com sua diva.

Buscou especialização musical e se lançou com uma versão cover em português de Britney Spears sugestivamente intitulada “Safada” e mal deu tempo de subir o zíper e ela lançou “Molhadinha” com a participação de Gaybriell. Wan Lo dá o recado certeiro acompanhado da batida perfeita para quicar no chão até encontrar petróleo.

DOMINICA, O AUDIOVISUAL DRAG GANHANDO VOZ.

Para Dominica a cena não é valorizada embora seja rica. A dragqueen teve um início complicado, por falta de experiência sua primeira faixa só ganhou a luz do dia após um ano da ideia original. Após uma árdua busca deu início a uma saga musical em 2018, porém está nos palcos há treze anos como dragqueen. Uma de suas faixas foi perdida, pois produziu com um beatmaker com o qual perdeu contato.

DOMINICA

A ideia de fazer música veio da vontade de ampliar o próprio público, antes já fazia alguns trampos como DJ, mas seguia firme na vontade de dar voz às próprias criações.

Com a pandemia os projetos tiveram dificuldade em serem continuados, mas produzindo conteúdo para as redes sociais. Sua maior dificuldade tem sido financeira e criativa, esteve preocupada com a situação ao seu redor com todos os eventos cancelados por causa do Covid-19. A drag que já recebeu o título de “Rainha do Bate Cabelo” no Maranhão, foi hostess, Miss Maranhão Gay em 2014 chegando a representar o Estado no Miss Brasil Gay de 2015 em 2016 ficou em segundo lugar no Miss Brasil World. Tem muito amor e dedicação envolvidos em seu trabalho, mas há a preocupação etária nesse meio onde artistas mais velhos tornam-se irrelevantes o que a leva a uma reflexão profunda do destino que seu trabalho tomará. Por mais que tenha um público isso ainda não lhe paga as contas. Batalha sozinha pelo próprio espaço.

Há o destaque para as faixas “Mais Que Danada”, que tem um clipe super bem trabalhado disponível no Youtube e “Assanhadinha” que também ganhou um clipe lançado em agosto na mesma plataforma.

YHAGO SEBAZ

JEFFERSON CARVALHO, ABRINDO E FECHANDO SEUS CICLOS.

No mercado desde 2016, Jefferson Carvalho reflete os sentimentos em uma naturalidade nítida. O imperatrizense deu início à sua jornada musical com o EP “Surreal” em 2018 e chama o projeto de “encerramento de um ciclo”, já que se trata de um trabalho falando sobre o término de um relacionamento. Deste EP de seis faixas, cinco delas ganharam videoclipe.

JEFERSON CARVALHO

Em 2019 fez shows na capital maranhense no Festival da Juventude e Festival BR 135. Recebeu indicação no festival de cinema “Maranhão Na Tela” com seus videoclipes e Prêmio Volts 2019, como “Melhor Cantor”.

Durante a pandemia do Covid-19, foi um dos artistas da campanha “Conexão Cultural” a fazer live musical. Este projeta conta com o apoio do governo do Estado. De acordo com seu release “o artista se sente feliz com a bagagem construída”, sente que seu trabalho foi reconhecido por quem lhe deu audiência e também que há uma identificação de seu público. Tem previsão de lançamento neste semestre ainda que a pandemia não tenha acabado. Vale a pena aguardar pelo quem adiante.

XERXES X: DO CAOS À SANTIDADE.

 Com o começo nos clubes noturnos de São Paulo, tendo a extinta boate A Loca como residência, o início dos singles de Xerxes X se deu com a faixa For Him, em parceria com Dennis Monteiro da Banda Segundo Inverno e 1983. Após este primeiro trabalho, o underground veio abaixo com a faixa “Bronze Friend”, que abordava o elitismo e a cocaína como moeda de troca na realidade dos bastidores da noite. Após isso, gravaria em parceria com a importante artista trans Claudia Wonder a faixa “Lixo Homofóbico” lançada nas redes em 2013 com estreia de clipe no Youtube em 2016. Este trabalho vem ser uma das primeiras letras de rap/trap no Brasil a abordar a problemática da homofobia cantada por um artista LGBT.

XERXES X

Em 2013, fechou parceria com o DJ Papaya, com quem vem produzindo suas músicas até aqui. A primeira “Exu Rodeia”, um ponto de Umbanda em Techno que tocou muitas vezes nas festinhas queer da capital paulista. Em seguida lançou “Shake It Up”, um moombaton com a participação da artista Jup do Bairro, que fala sobre xenofobia com uma linguagem para lá de debochada. Venceu a categoria “Artista Revelação” do Prêmio Dynamite 2014 e participou das principais festas do circuito paulistano.

Em 2019 o primeiro single profissional saiu, também abordando a temática umbandista, “Defumação” abriu os trabalhos da nova era do artista bigênero. Esta faixa foi recentemente indicada como “Melhor Música Eletrônica de 2018/2019” da edição de 2020 do mesmo Prêmio Dynamite, ainda a ser entregue. Em fevereiro de 2020 o single de Exu Caveira, a segunda faixa de seu projeto “Laroyê” estreou com um clipe lançado em junho do mesmo ano.

Ainda que não esteja efetivamente na cena local do Maranhão, Xerxes X sempre faz questão de levar as referências de sua origem para o palco, sempre falando das maravilhas que se escondem na ilha de São Luis.

ONLY FUEGO E BUTANTAN

OUTROS TIMBRES

Muitas são as linguagens musicais que compõem a cena musical Queer maranhense, alguns outros artistas abordados para a realização desta matéria encontravam-se indisponíveis, mas não podem deixar de ser citados. Em especial a dragqueen Enme, que vem ganhando espaço com seu R&B cheio de reinvindicação social. A também dragqueen Butantan e Only Fuego já têm um trabalho sólido em território nacional e são figuras carimbadas em trios e shows da Pabllo Vittar. Frimes, também drag, é responsável pela própria produção musical, com um talento indiscutível traz uma pegada futurista a cada trabalho. Seketh Bárbara também é potência nesse grupo de dragqueens com trabalhos musicais.  Yhago Sebaz, irmão de Gaybriell, já tem um vasto repertório com videoclipes e muitas músicas lançadas nos streamings, sua discografia é bastante rica em ritmos e vertentes musicais. A cantora Natália Ferro é também um importante nome nessa cena.

ENME PAIXÃO

Ainda não é possível prever o que será dessa construção musical, mas já é perceptível que ela não terá um fim tão breve, outros nomes nos próximos anos irão aparecer quebrando paradigmas e narrando a própria vida, que sabemos, raramente é algo leve de ser contado quando se trata de existências LGBT. E que assim seja, que os pioneiros sejam exaltados sempre, mas que jamais haja um derradeiro, pois mais que nunca as expressões artísticas e culturais se tornaram fundamentais no combate ao extremismo ideológico que a cada momento faz o fascismo ganhar espaço em todos os âmbitos sociais.  E é muito importante que possamos todos conhecer os artistas que não estão na grande mídia e como acontece no Maranhão, ajudam a construir a identidade e um tempo onde a tolerância à diversidade será uma realidade.

Por Xerxes X.


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