O último combate
Original publicado em Abril de 2020 em:
https://progressive.international/blueprint/34da398a-af05-43bb-9778-c27023932630-la-lutte-finale/en
Autor: Mike Davis
Tradução: Allan Rodrigo de Campos Silva
O surto marcou o início de uma era das pragas e antecipou e detonou a ‘recessão iminente’ que estava na boca da maioria dos economistas e analistas financeiros desde o ano passado. Em nenhum outro cenário, no entanto, a queda inevitável teria começado com uma perda de controle e uma destruição tão impressionante. Ela atacou as estruturas socioeconômicas e os sistemas políticos ainda profundamente perturbados pela Grande Recessão de 2008-09, assim como abriu veredas para o fortalecimento do nacionalismo extremista e o controle através da vigilância universal. Na Europa já surgiu o primeiro “golpe do coronavírus” com Viktor Orban, da Hungria, usando a pandemia como uma desculpa para afastar o parlamento e governar por decreto – uma ditadura, exceto pelo nome. Em Israel, o primeiro ministro indiciado Benjamin Netanyahu também invocou a crise para bloquear o parlamento, ao mesmo tempo em que lançou o Shin Bet, o equivalente israelense ao FBI, vigiar os telefones de todo mundo como ‘medida de saúde pública’. A Índia, no entanto, se mantém como exemplo mais sinistro, onde o governo hindu de Narenda Modi, imóvel durante os três primeiros meses do surto, agora toma muçulmanos como bode expiatório e incita pogroms, levando Arundhati Roy a advertir que “a situação está se aproximando do genocídio”.
O FMI previu recentemente que a crise “poderia derrubar o PIB global em 9 trilhões de dólares nos próximos dois anos”. E isso foi antes do preço do petróleo cair abaixo de zero nos Estados Unidos. Os treze países da OPEP e os outros países produtores de petróleo estão diante do espectro de um desastre que vai desde a recessão turbulenta (Arábia Saudita) até a provável ruína (Angola). Ao mesmo tempo, o fracasso catastrófico do governo Trump em conter a pandemia nos primeiros meses projetou uma melancolia tardia da República de Weimar sobre o futuro dos Estados Unidos. A produção da miséria em massa tretorna em uma escala nunca vista desde 1933, com um em cada três trabalhadores desempregados e entre 15 e 20 milhões de americanos – especialmente crianças e minorias – engrossam os números da pobreza até o final do ano, enquanto as fileiras de pessoas não asseguradas aumentará para cerca de 40 milhões em junho, à medida em que os desempregados perderem os auxílios de trabalho. Os países da OCDE como um todo encaram a perspectiva de anos de estagnação, altos níveis de desemprego estrutural, extinção de um quarto ou mais das pequenas empresas e crises de dívidas por todos os lados.
São os países de baixa renda, no entanto, que enfrentam as possibilidades mais terríveis. A Oxfam adverte que a crise econômica pode levar meio bilhão de pessoas à pobreza em todo o mundo, enquanto a FAO, que antes da pandemia havia alertado sobre a possibilidade da pior fome desde a Segunda Guerra Mundial, estima agora que inacreditáveis 265 milhões de pessoas possam morrer de fome até o final do ano. No pior cenário, de acordo com David Beasley, do Programa Mundial de Alimentos da ONU, “300.000 pessoas podem morrer de fome todos os dias durante três meses. Sem contar o aumento da fome devido ao surto de Covid-19.” As pessoas já estão lutando por suas vidas. Protestos por alimentos – remanescentes da onda global de protestos de 2008-09 – eclodiram na África do Sul, enquanto na Colômbia “os residentes da província costeira de La Guajira bloquearam estradas para chamar a atenção para a necessidade de alimentos”. As partes pobres dos países ricos também estão em agitação. Roma enviou 20.000 soldados ao sul pobre da Itália – regiões da Campânia, Calábria e Sicília – em antecipação a tumultos que podem surgir à medida em que pessoas foram ficando sem comida e sem dinheiro. Numa perspectiva global, reações em cadeia ocorrem de forma descontrolada em uma nebulosa de caos que, como temem alguns, poderia acelerar a chegada de algo pior que a barbárie.
A atual pandemia em escala global expõe e amplia as divisões existentes dentro e entre as sociedades e nos lembra que a sobrevivência do quinto mais pobre da humanidade está cada vez mais em questão. Uma doença infecciosa, é claro, não se resume apenas a um patógeno e seu conjunto efeitos, mas diz respeito a um ecossistema complexo no qual a evolução de uma epidemia é moldada por seus ambientes naturais e sociais, especialmente o estado geral de saúde pública e a frequência da infecção. O Covid-19 nos desafia a reconhecer que, de uma perspectiva imunológica, existem duas humanidades e duas pandemias. Uma humanidade se alimenta bem, tem acesso a cuidados de saúde competentes e sofre majoritariamente de obesidade e doenças crônicas. A outra humanidade sofre com desnutrição, seja de forma episódica ou contínua, tem acesso precário ou inexistente aos cuidados médicos e é exposta a doenças infecciosas o tempo todo. Na Europa, na América do Norte e no Leste industrializado da Ásia, a maior parte da população pertence à primeira categoria, embora a pobreza e o racismo criem guetos imunológicos – que afetam até 25% da população nos Estados Unidos – onde a saúde das pessoas se assemelha mais às condições do terceiro mundo condições. Na segunda humanidade, localizada principalmente no Sul global e compreendendo cerca de 2 bilhões de pessoas, a maior parte da população está comprometida imunologicamente por desnutrição, por contaminação fecal generalizada e pelas altas taxas de doenças infecciosas e parasitárias. Os corpos das pessoas pobres, portanto, oferecem um banquete mais generoso para o vírus SARS-CoV-2 e, à medida que percorre as favelas da África e da Índia, pode fazer crescer a mortalidade entre pessoas com menos de 50 anos. O verdadeiro massacre, em outras palavras, apenas começou.
“O Covid-19 nos desafia a reconhecer que, de uma perspectiva imunológica, existem duas humanidades e duas pandemias.”
Ainda é impossível ter mais do que uma perspectiva muito limitada sobre os contornos globais finais desse cataclismo econômico e biológico, em que a revolta na biosfera interage com o abismo da desigualdade do capitalismo. Muitos o acreditam que se trata da crise final da era neoliberal da produção capitalista globalizada que começou com a eleição de Margaret Thatcher em 1979 e de Ronald Reagan um ano depois. Contudo, se o próximo estágio do capitalismo se anuncia, provavelmente será a idade do ferro de Hesíodo quando “os deuses abandonam a humanidade” e “não haverá ajuda contra o mal”. A seguir, analiso a macro-dinâmica da crise sob quatro pontos de vista diferentes:
• Nos casos da América do Norte e da União Européia o que explicaria o rápido colapso das instituições responsáveis por monitorar e responder aos surtos de doenças, acompanhado por um déficit enorme na cooperação internacional e na ajuda mútua? O nacionalismo econômico derrotou o capitalismo transnacional?
• Um bilhão e meio de moradores de favelas estão ameaçados de morte pela catástrofe econômica e pandêmica, à medida que as economias da África e do sul da Ásia começam a implodir. Uma nova crise das dívidas – em uma escala muito maior do que nos anos 80 – encerrará seu futuro para sempre?
• Atualmente, a China é o centro logístico da batalha mundial contra o Covid-19. Mas, será capaz de tirar a economia global da recessão, como em 2008-09? Ou seu próprio mergulho na recessão definirá uma época de estagnação contínua e, provavelmente, uma guerra?
• Em que pese as poucas exceções (Noruega e Portugal), os partidos social-democratas e os movimentos progressistas falharam em atender às necessidades da humanidade neste período mortal. O vírus do eu-primeiro parece ter uma taxa de propagação com número básico de reprodução maior do que o próprio coronavírus. Além disso, o enquadramento da sobrevivência humana em termos fundamentalmente nacionalistas, mesmo se acompanhado por evocações falsamente simpáticas aos interesses comuns globais, equivale a aceitar uma triagem da população da Terra. O internacionalismo genuíno pode encontrar de novo em voga nas lutas de hoje e nas políticas da esquerda? Quais são as formas e recursos organizacionais necessários para conseguir isso?
Falha sistêmica
Apesar dos planos de ação emergencial elaborados há muito tempo, simulações frequentes e um sistema internacional para alertas prévios, a pandemia foi imparável na Europa Ocidental e nos Estados Unidos porque conseguiu explorar as principais vulnerabilidades políticas nos sistemas de saúde pública nacionais e internacionais. A Grande Recessão de 2008-09 causou grande choque fiscal nas instituições de saúde em todos os lugares e os cortes na maioria dos países foram mantidos e racionalizados como uma “austeridade necessária” tanto pelos governos de direita quanto pelos de centro-esquerda. Essa foi a principal condição preexistente, juntamente com a liderança fracassada, responsável por minar a resposta ao Covid-19 nos países com rendimento elevado.
Apenas um mês antes da China anunciar o surto, dezenas de milhares de trabalhadores do setor de saúde foram às ruas ao redor da Europa para exigir aumentos nos orçamentos do setor. “Após uma década de austeridade”, alertou a European Public Service Union, com oito milhões de membros, “os sistemas públicos de saúde estão agora em um ponto de ruptura e os profissionais de saúde não podem mais suportar o peso de serem mal remunerados, contando com poucos funcionários e poucos recursos.” Em alguns casos, como no NHS da Grã-Bretanha, o subfinanciamento faz parte de uma estratégia maior de direita para a privatização da saúde. Enquanto isso, nos Estados Unidos, o governo Obama deu importantes primeiros passos em direção à cobertura universal em 2009, mas a Lei de Assistência Acessível (Affordable Care Act) permanece sob o cerco implacável da direita. Além disso, onde quer que estiveram no governo, os republicanos se recusaram a restaurar o financiamento aos departamentos locais e estaduais de saúde pública, deixando o setor com 60 mil funcionários a menos do que em 2007.
Essas medidas equivocadas de austeridade e os ataques ideologicamente motivados ao setor público que minaram a segurança da saúde pública nos países ricos também desmanchou a infraestrutura global de prevenção de doenças até então financiada. Dois meses após os primeiros casos relatados fora da China, os principais organizadores da rede internacional de sentinelas da pandemia e primeiros socorristas – a Organização Mundial da Saúde (OMS), o CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças) dos EUA e o Centro Europeu de Prevenção e Controle de Doenças – sofreram grandes falhas operacionais ou foram marginalizados por políticas nacionalistas dos governos dos países membros.
A OMS é uma espécie de concha oca há anos, enfraquecida por uma crise orçamentária crônica que a obriga a buscar 80% de seu financiamento por meio de negociações individuais com alguns países ricos, com as gigantes empresas farmacêuticas e com alguns mega-filantropos, tal como a Fundação Gates, todos com poder excessivo para definir suas prioridades. Por exemplo, durante a crise da gripe aviária em 2005, recusou-se a endossar o apelo da Índia pela produção geral de antivirais cruciais – e defendeu as patentes e os lucros da Big Pharma em troca de um pequeno lote de medicamentos. Uma década depois, não foi capaz de organizar uma resposta rápida ao surto de Ebola na África Ocidental, um erro desastroso que colocou o governo Obama diante de esforços de socorro de última hora. E no ano passado, curvou-se a Pequim e endossou a eficácia da medicina tradicional chinesa – uma decisão que assustou muitos cientistas e ativistas dos direitos dos animais.
Desde a confirmação do surto, seu diretor-geral, Tedros Ghebreyesus, age como um pedinte diante de Pequim e Washington, elogiando simultaneamente Xi e Trump. A eleição de Ghebreyesus em 2017, liderada por Addis Abeba e Pequim, foi a primeira grande demonstração do crescente alinhamento da União Africana com a política externa chinesa. Sua esperança de que fosse capaz de aplacar Washington e manter a OMS na direção da resposta internacional foi cruelmente frustrada depois que os detratores da China e nacionalistas econômicos no campo de Trump, liderados por Steve Bannon e Peter Navarro, aproveitaram a chance para difamar a organização como submissa ao Partido Comunista Chinês. O presidente dos EUA que inicialmente elogiou Xi e Ghebreyesus não resistiu em tomar a OMS como bode expiatório e cortou o financiamento americano (um quarto de seu orçamento) no momento em que seu trabalho é essencial. A decisão republicana, fazendo soar os tambores de guerra para a China e sua “responsabilidade” pela pandemia, ao invés de abraçar a cooperação científica e uma campanha de ajuda multilateral, é um presságio perigoso para a longa batalha que temos pela frente.
Enquanto isso, o CDC dos EUA está sob ataque desde a posse de Trump, perdendo grande parte do seu orçamento, além de importantes pesquisadores e agentes internacionais de campo. Em 2018, a voz do CDC dentro da Casa Branca, a Diretoria de Segurança Global da Saúde do Conselho de Segurança Nacional – uma ‘equipe dos sonhos’ montada por Obama – foi abolida e seus líderes especialistas demitidos pelo então conselheiro de segurança nacional de Trump, John Bolton. No ano passado, apenas três meses antes da China notificar o surto em Wuhan, o governo norte-americano cancelou o financiamento do programa de Ameaças Pandêmicas Emergentes – PREDICT, um sistema muito elogiado de alerta prévio criado pela USAID para trabalhar em conjunto com os projetos do CDC no exterior. Então, em janeiro, quando finalmente chegou notícia que o Covid-19 batia à nossa porta, o CDC decidiu desenvolver seus próprios kits de teste, ao invés de usar os kits desenvolvidos por pesquisadores alemães para a OMS. Enquanto centenas de milhares de kits estavam sendo enviados para todo o mundo, o CDC descobriu que seus próprios diagnósticos eram falhos e forneciam resultados falsos, em função de uma contaminação no processo de fabricação. (Mais tarde, a FDA relataria que isso isso teria ocorrido por uma falha do CDC em seguir seus próprios protocolos) Durante todo o mês de fevereiro, período em que a oferta de testes poderia ter impedido a decolagem exponencial da doença, o CDC agia de forma atrapalhada enquanto seus especialistas trabalhavam para consertar os testes.
Além disso, a ampla rede científica internacional do CDC sempre desempenhou um papel importante ao lado da OMS durante campanhas de vacinação e surtos de doenças. Agora, de acordo com um dos principais consultores da OMS, tornou-se uma “não-entidade” na batalha global contra o Covid-19. “Era uma organização altamente profissional e confiável que basicamente desapareceu”, acrescentou. “É uma tragédia para a saúde global”. Da mesma forma, o CDC perdeu seu papel tradicional nos EUA como coordenador-chefe de resposta às doenças em razão das falhas nos testes, mas também porque em fevereiro um de seus se posicionou contra a garantia de Trump de que estava ‘tudo está sob controle‘ (Robert Redfield,o diretores, cristão renascido, agora passa grande parte de seu tempo no papel terciário de ser o elo de crise na base religiosa de Trump.
Em vez disso, o bastão foi passado aos parentes e sicofantas de Trump: o vice-presidente Pence, o genro Jared Kushner, a ‘coordenadora’ de medidas de resposta Deborah Birx, o presidente da Força-Tarefa de Coronavírus Alex Azar (o secretário de Saúde, agora sob ameaça de demissão), e o vice de Azar, Michael Caputo. Eles agem como patetas, cada um alegando estar no comando. Somente Birx é médico, enquanto a principal qualificação de Azar é sua formação como lobista-chefe da Companhia farmacêutica Eli Lilly, depois promovido ao chefe das operações da empresa nos EUA. Enquanto isso, Caputo é um agente de campanha republicano, notório divulgador de teorias da conspiração e protegido do criminoso condenado Roger Stone. Sua principal qualificação parece ser sua habilidade em desmantelar a imprensa. Tendo ignorado repetidas advertências de que o Estoque Nacional Estratégico de suprimentos médicos estava seriamente comprometido, Kushner e os outros agora criam uma cortina de fumaça com falsas alegações de que o governo federal nunca assumiu qualquer obrigação de ser o primeiro a agir. Essa situação racionaliza a ‘doutrina Trump’ – improvisada espontaneamente – para forçar estados e governos locais a competirem por suprimentos médicos da indústria privada e da China. Como Trump advertiu os governadores: “O governo federal não deveria estar lá fora comprando grandes quantidades de itens e depois distribuindo. Você sabe, não balconistas.“
O primeiro ministro favorito de Trump, Boris Johnson, nos primeiros meses também se concentrou na ameaça do Covid-19 para os lucros e não para as vidas. Seu governo se opôs a qualquer medida – distanciamento social, fechamento de escolas, ordens de permanência em casa etc. – que pudesse prejudicar a economia. Enquanto a OMS alertava para a pandemia emergente, Johnson soltava fogos de artifício para comemorar o Brexit e zombava das exigências para iniciar as testagens para o vírus. “Estamos começando a ouvir uma retórica autárquica bizarra”, disse ele, “enquanto barreiras são erguidas e houver o risco de que novas doenças como o coronavírus causem pânico e um desejo de segregação de mercado que vá além do que é clinicamente racional, a ponto de causar danos econômicos reais e desnecessários. ” Sua atitude indiferente – ele deixou de comparecer em ao menos cinco reuniões do gabinete de emergência, onde especialistas discutiam o surto – foi amplamente imitada pelo público britânico, diante de poucas críticas do Partido Trabalhista, sem liderança. Johnson e Dominic Cummings, sua eminência parda, acreditavam que a ameaça do vírus era exagerada e, para salvaguardar a economia, deveria ser permitido que ele se esgotasse por conta própria. De acordo com o Sunday Times, Cummings disse em uma reunião privada em março que os objetivos do governo eram “imunidade de rebanho, proteger a economia e se isso significa que alguns aposentados irã morrer, que pena“.
Essa atitude implacável de laissez-faire foi enfatizada pela decisão do governo de permitir que o Festival de Cheltenham – três dias de corridas que reúnem mais de 250.000 pessoas – de fato ocorresse em 10 de março. Dentro de uma semana, centenas de espectadores estavam relatando sintomas. Ao mesmo tempo, os hospitais começaram a descobrir a falta de preparação nacional à medida que máscaras faciais e ventiladores se revelavam indisponíveis. Uma fonte anônima de alto escalão do governo disse mais tarde ao Times: “Praticamente todos os planos que tínhamos não foram ativados em fevereiro. Quase todos os departamentos governamentais falharam em implementar adequadamente seus próprios planos de pandemia. Era uma enorme teia de falhas, todo o dominó caiu. ” Johnson e Cummings também caíram e ficaram fora de serviço por semanas, vítimas do Covid.
As respostas do Conselho Europeu e dos estados membros da UE à pandemia não foram menos desorganizadas e mesquinhas do que as dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha. (A mobilização retardatária do Japão pertence à mesma categoria.) Por dois meses, os líderes da UE – apoiados por especialistas do Centro Koch da Alemanha e do Centro Europeu de Prevenção e Controle de Doenças (ECDC) – sustentaram que a ameaça para a Europa era apenas de “baixa a moderada”. Houve poucos testes iniciais e, consequentemente, poucas dados para avaliar o volume e a velocidade das infecções. Os ministros da saúde da Europa, reunidos em Bruxelas em 13 de fevereiro, foram informados pelo diretor do ECDC que a Europa tinha capacidade laboratorial adequada e que a estratégia de contenção da UE estava funcionando. Além disso, a “grande preocupação na Europa”, de acordo com uma investigação do periódico Politico, “reside nos efeitos secundários de uma desaceleração da economia chinesa” – não sobre a mortalidade em massa. Dez dias depois, chegou a estação do carnaval e os esquiadores reuniram-se nas montanhas. Nas lotadas estâncias de esqui na Áustria e na Itália, o Covid-19 foi espalhado por indivíduos que retornavam do leste da Ásia. O surto italiano logo seguiu com seus terríveis números de mortos entre os idosos. Embora cada estado da UE mantenha o controle sobre seus sistemas de saúde, um “Mecanismo Sindical de Proteção Civil” fornece ajuda e coordenação mútuas no advento de grandes desastres, incluindo “sérias ameaças à saúde além-fronteiras”. Em 28 de fevereiro, os italianos demandou a sua ativação. De acordo com uma artigo do Politico, “para as autoridades que monitoram a resposta à crise, a admissão de que Roma estava com problemas foi chocante. Ainda mais assustadora foi a reação dos outros 26 países da UE: o silêncio. Com as capitais da UE começando a entrar em pânico diante da sua própria vulnerabilidade, ninguém se adiantou para ajudar. ”
Apenas um país, a China, ofereceu assistência rápida e imediata, enviando especialistas médicos e um carregamento de suprimentos. Enquanto isso, os comissários da UE descobriam tardiamente, assim como no Reino Unido, uma escassez aguda e pouco conhecida de equipamentos de proteção individual; a maior parte dos países esgotou os estoques com a falsa suposição de que os fabricantes atenderiam facilmente à crescente demanda. Em 3 de março, a França interrompeu as exportações de máscaras e ventiladores e fechou suas fronteiras. Seu exemplo foi rapidamente seguido pela Alemanha e grande parte dos países do norte da Europa. A famosa Área de Viagens Comuns da UE foi abolida sem qualquer discussão diplomática. O relutante ECDC elevou o nível de ameaça para “moderado a alto” e a burocracia de Bruxelas finalmente criou uma equipe de resposta às emergências por coronavírus. Enquanto isso, ministros da saúde enfurecidos em vários países reclamaram da falta de notificação ou de consulta das nações irmãs: eles tiveram que recorrer à mídia para descobrir o que outros estados estavam fazendo.
A Itália fervilhava e, em 10 de março, seu representante permanente da UE publicou um artigo irritado que denunciava o “egoísmo” que “leva à adoção de uma lógica em que tudo mundo perde, euquanto cada age como um pedinte diante do vizinho”, comparando os atuais líderes da UE àqueles que em 1914 “sonambularam” a Europa em direção à destruição. A Itália exigiu a criação de uma linha de crédito européia para salvar pequenas e médias empresas do fechamento permanente; depois, a Espanha, o segundo epicentro do surto, aliou-se a Roma para pedir a emissão de ‘títulos corona’. Amsterdã e Berlim imediatamente se opuseram à proposta, indicando que esperavam que a Itália e a Espanha vivessem com as mesmas dietas de fome a que sujeitaram a Grécia no início da década. Isso acabou por definir um caminho claro para o “Italexit”, caso a Lega de Matteo Salvini retorne ao poder e demande um referendo sobre a adesão da Itália ao bloco.
Naturalmente, a desunião europeia durante a pandemia agravou os danos causados pela cruzada de Trump contra suas principais instituições e tradições da aliança atlântica: de memsa forma como já podemos vislumbrar uma UE menor e menos poderosa, também a desintegração da OTAN, mesmo que improvável no próximo futuro, torna-se mais do que um improvável sonho russo.
No meio tempo, a ONU se mostrar como mais uma instituição vazia. “Um secretário-geral da ONU notavelmente frustrado, Antonio Guterres”, escreve ao Los Angeles Times que “viu seus pedidos por mais coordenação global amplamente ignorados durante a crise da saúde – incluindo um cessar-fogo mundial em conflitos regionais, um alívio das sanções contra países sitiados pela pandemia como o Irã e a Venezuela assim como o pedido por um fundo de ajuda humanitária de vários bilhões de dólares”.
Com a Assembleia Geral da ONU paralisada e a OMS e suas agências irmãs incapazes de puxar a liderança, os gêmeos que deram origem ao acordo de Bretton Woods – o FMI e o Banco Mundial – são colocados no núcleo duro institucional de apoio à globalização econômica. Com o declínio das finanças da OMS, o Banco – que devastou os orçamentos de saúde pública nos países mais pobres com seus regimes de ajuste estrutural ao longo dos anos 80-90 – tornou-se ironicamente o líder em saúde mundial. Mas a ironia é apenas parcial; afinal, os empréstimos do Banco à saúde ultrapassaram o orçamento total da OMS em 1990, com sua influência nos gastos internacionais em saúde aumentando desde então. Se a OMS sobreviver à crise (ou seja, se Biden vencer a eleição presidencial dos EUA e restabelecer o financiamento dos EUA), é provável que a agência se torne um mero satélite do Banco, com a segurança coletiva da saúde subordinada às outras prioridades do Banco. Imagine um mundo em que o médico chefe também seja o cobrador de dívidas espalhadas pelo mundo.
O destino dos pobres
Na introdução deste ensaio, argumentei que havia duas pandemias diferentes do Covid-19 – e o impacto do vírus nas grupos de suscetíveis de faixas etárias mais jovens pode diferir radicalmente nos países pobres ou em grupos de extrema pobreza. A história da gripe espanhola nos explica por que isso pode ocorrer. A pandemia de 1918-19, como bem se sabe, foi o maior evento único de mortalidade na história da humanidade, estima-se que tenha levado entre 1 a 2% da humanidade. Na América do Norte e na Europa Ocidental, o H1N1 original foi mais mortal para jovens adultos. Em geral, isso foi explicado como resultado de seus sistemas imunológicos relativamente mais fortes, que reagiram exageradamente à infecção atacando células pulmonares, levando à pneumonia viral e ao choque séptico. Mais recentemente, no entanto, alguns epidemiologistas levantaram a teoria de que os adultos mais velhos poderiam possuir “memória imune”, proveniente de um surto anterior, na década de 1890. De qualquer forma, a gripe encontrou um nicho favorito nos acampamentos do exército e nas trincheiras do campo de batalha, onde destruiu jovens soldados às centenas de milhares. Isso se tornou um fator importante na batalha entre os Impérios. O colapso da grande ofensiva alemã na primavera de 1918 e, dessa maneira, o próprio resultado da guerra, foi atribuído ao fato de que os Aliados, em contraste com o inimigo, poderiam re-abastecer seus exércitos doentes com novas tropas americanas.
Mas a pandemia nos países mais pobres tinha um perfil diferente. Raramente se leva em consideração que quase 60% da mortalidade global (ou seja, pelo menos 20 milhões de mortes) ocorreu no Punjab, em Bombaim e em outras partes do oeste da Índia, de onde vinham as exportações de grãos para a Grã-Bretanha e onde as práticas brutais de confisco coincidiram com uma grande seca. A escassez resultante de alimentos levou milhões de pessoas pobres à beira da morte por causa da fome. Eles se tornaram vítimas de uma sinergia sinistra entre desnutrição – que suprimia sua resposta imune à infecção e produzia bactérias em ritmo desenfreado – e também da pneumonia viral. O caso é semelhante ao Irã ocupado pelos russos e britânicos, vários anos de seca, cólera e fome, seguidos por um surto generalizado de malária, pré-condicionaram a morte de uma parcela entre 10% e 20% da população, ao menos um milhão de pessoas. Nos dois casos, a mortalidade se distribui de forma mais ampla ao redor do espectro demográfico do que na Europa.
“Gaza, Haiti, Bolívia, Guatemala, Papua-Nova Guiné e Micronésia, bem como a maior parte dos campos de refugiados do mundo são valas comuns a espera para serem preenchidas. Quem são os aliados dos seus pobres?”
Essa história – especialmente as consequências das interações com a desnutrição e as infecções existentes – deve nos alertar para tratar com cautela as repetidas garantias de que, uma vez que a população urbana da África subsaariana é a mais jovem do mundo (apenas 3% da população teria mais de 65 anos, enquanto essa parcela atinge 23% na Itália e 15% nos Estados Unidos), sua mortalidade será proporcionalmente menor. Também duvidosa é a ideia, defendida por Trump, de que a pandemia retroceda diante de um clima mais quente. A segunda e mais mortal onda da gripe espanhola começou no meio do verão. A África é provavelmente “uma bomba-relógio”, tal como alertou a Revista Science em 15 de março.
Além da desnutrição, outro combustível para uma explosão viral é o grande número de pessoas com sistema imunológico debilitado. O vírus da HIV/AIDS matou 36 milhões de africanos na última geração e os pesquisadores estimam que hoje existam 24 milhões de casos a mais hoje. Soma-se a isso uma população de cerca de 3 milhões ou mais de pessoas com a ‘peste branca’ – a tuberculose. Trezentos e cinquenta milhões de africanos sofrem de desnutrição crônica e o número de crianças pequenas com problemas de crescimento causados por desnutrição tem aumentado em milhões desde o ano 2000. Distanciamento social em mega-favelas como Kibera, no Quênia, ou em Khayelitsha, na África do Sul, é uma impossibilidade óbvia. Soma-se a isso o fato de que a maior parte da população africana não tem acesso a água limpa e a saneamento básico. “Água limpa e sabão”, segundo a ONU, “são tão escassos que apenas 15% dos africanos subsaarianos tiveram acesso a equipamentos básicos para lavagem das mãos em 2015”. Além disso, cinco dos seis países com os sistemas de saúde do mundo estão na África, incluindo o mais populoso, a Nigéria. Enquanto isso, o Quênia, um país com 50 milhões de pessoas e conhecido por exportar excelentes enfermeiros e médicos, possui exatamente 130 leitos de UTIs e 200 enfermeiros certificados para lidar com a chegada do Covid-19. O Sudão, com uma população comparável, tem apenas 30 leitos. Dez países carecem de um único ventilador e, em toda a África, há uma escassez aguda de oxigênio para uso em casos graves. Como disse um oficial de ajuda da ONU à Aljazeera: “Não há curva para achatar quando não há assistência médica“.
Obviamente, essas condições também estão presente em outros lugares: Etiópia, Nigéria, Congo, Índia e Paquistão são responsáveis por metade das mortes de crianças em todo o mundo. Gaza, Haiti, Bolívia, Guatemala, Papua-Nova Guiné e Micronésia, bem como a maior parte dos campos de refugiados do mundo são valas comuns a espera para serem preenchidas. Quem são os aliados dos seus pobres?
De volta aos EUA, e diante de poucas queixas dos democratas – cuja recente virada progressiva foi comprometida por uma surpreendente falta de preocupação com as questões globais da desigualdade – Washington abandonou qualquer pretensão de liderança humanitária à medida que continua com o trabalho frenético de construção de um muro da fronteira. América Primeiro, ao que parece, significa África por Último. Trump, que já furtou suprimentos médicos destinados à Alemanha e a outros países, ordenou recentemente que a Agência dos EUA para a Assistência Internacional (USAID) proíba que sua ajuda seja usada por ONGs nos países mais pobres para comprar máscaras faciais e outros equipamentos de proteção. Aparentemente, ele pretende restringir o máximo possível a oferta global, ignorando os pedidos de uso da legislação existente que permitiria aumentar a produção destes itens no país. Desde o início da pandemia ele também cortou a assistência médica ao Iêmen e reforçou os embargos a Cuba e ao Irã.
“Para um agricultor liberiano comum ou uma mãe queniana – ou, aliás, um italiano idoso trancado dentro de um apartamento – o que importa agora não é a antiga mitologia de uma América generosa ou uma Europa fortemente unida, mas máscaras, remédios e ventiladores. Nesse momento, eles terão a inscrição: ‘Made in China’.”
Enquanto isso, a Europa repassou às pequenas ONGs a principal responsabilidade no cuidado da saúde de dezenas de milhares de refugiados em campos fétidos. No início da crise, Macron – desesperado para salvar o império neocolonial francês em decadência na África – mobilizou uma pequena parcela da ajuda europeia para equipar os países africanos com equipamento para testagens. Contudo, uma vez que o Covid-19 apareceu sob a sombra da Torre Eiffel, sua atenção se voltou abruptamente para a situação doméstica. (No entanto, ele continuou a advogar uma moratória nos pagamentos da dívida africana.) A subsequente “crise de solidariedade” na UE obscureceu completamente os tépidos esforços de seus membros para coordenar a ajuda internacional.
Até agora, apenas quatro nações tomaram o lado dos miseráveis da terra. Três delas são pequenas. Os médicos de Cuba, como sempre, são os primeiros a chegar à linha de frente de qualquer surto de doença perigosa – como nos recentes casos de cólera e Ebola – e suas excelentes equipes médicas já estão trabalhando no combate ao Covid-19 em 18 países, incluindo Jamaica, Haiti, Itália, Togo, Angola e até Andorra. A Noruega, o país escandinavo menos afetado pelas recentes ondas de chauvinismo nacional, foi o primeiro na Europa a responder aos pedidos de Adis Abeba e Pretória, clamando por um esforço total para ajudar a África. A Irlanda, que já nacionalizou todos os seus hospitais, quadruplicou imediatamente a sua contribuição para a OMS depois que Trump cortou o financiamento americano. (A Rússia também enfiou os pés em águas humanitárias, mas concentrou-se principalmente nas conturbadas negociações com a Arábia Saudita para construir uma rede de segurança para suas exportações de petróleo e gás).
Mas é a China, com suas enormes fileiras de suprimentos médicos e sua experiência acumulada na luta contra influenzas e coronavírus, que está trazendo a ajuda mais significativa para os países sitiados em todo o mundo. Sua capacidade de fazer isso pode ser medida pelo fato de que, a partir do início de fevereiro a China expandiu a fabricação de máscaras protetoras de 10 milhões por dia para 116 milhões em apenas quatro semanas e está reajustando rapidamente a produção para se tornar o arsenal do mundo na luta contra o novo vírus. No início de abril a China já havia enviado para o exterior quase 4 bilhões de máscaras e 2,8 milhões de kits de teste. Sua tentativa agressiva de liderar o mundo na preparação do Covid-19, incrementada por seu sucesso em suprimir a epidemia original em Wuhan, tem importantes implicações geopolíticas.
Pequim acumulou grande influência econômica global nos últimos vinte anos, tornando-se, por exemplo, o maior parceiro comercial da Alemanha, Brasil, Austrália, Indonésia e muitos outros países. Mas seu forte poder econômico excedeu em muito o seu poder soft – ou seja, sua influência como modelo sistêmico admirado para o resto do mundo. Sua Iniciativa do Cinturão Econômico da Rota da Seda, lançada em 2013 e financiada em grande parte por empréstimos a 70 países diferentes, é uma das principais razões pelas quais a relação dívida / PIB nos chamados “mercados emergentes e economias em desenvolvimento” aumentou de 58% para 168% na última década. Particularmente na África subsaariana, onde os empréstimos e investimentos em infraestrutura da China a tornaram o principal credor da região, tem havido crescente ressentimento popular contra o que muitos acreditam ser simplesmente uma forma nova e potencialmente incapacitante de neocolonialismo. A resposta de Pequim ao Covid-19, no entanto, oferece oportunidades para reivindicar o manto de liderança moral. Para um agricultor liberiano comum ou uma mãe queniana – ou, aliás, um italiano idoso trancado dentro de um apartamento – o que importa agora não é a antiga mitologia de uma América generosa ou uma Europa fortemente unida, mas máscaras, remédios e ventiladores. Nesse momento, eles terão a inscrição: ‘Made in China’.
Mas as máscaras faciais são uma coisa, as dívidas de bilhões de dólares são outra. Nos céus da África e de outras regiões pobres do mundo, os abutres – ou seja, os bancos de plumagem estrangeira e o temido FMI – sobrevoam acima dos cadáveres dos riquezas nacionais e orçamentos públicos. Desde 2014, quando o valor das commodities globais despencou, a dívida foi alimentada com esteróides na África subsaariana, grande tomada como empréstimo para projetos de infraestrutura, tais como barragens, ferrovias, rodovias e portos.A China tem sido o principal credor bilateral do continente (em média 10 bilhões de dólares anuais), sendo Angola o maior tomador de empréstimos, seguido pela Etiópia e o Quênia. Os ganhos do petróleo são a garantia mais importante nas transações africanas. Os países que tomavam grandes empréstimos quando o petróleo estava acima de 100 dólares por barril, agora ganham menos de um décimo disso e são forçados a dedicarem quase toda a sua renda do petróleo no pagamento das dívidas. De qualquer forma, os bancos estrangeiros fecharam suas linhas de créditos para os países subsaarianos; contudo, mesmo com a interrupção dos empréstimos, a dívida nacional continua se valorizando, graças ao fortalecimento do dólar e ao enfraquecimento das moedas locais. Tudo isso contribui para a depressão econômica e a implosão de dívidas que destruirão as economias da maior parte dos países e permitirá ainda menos gastos com saúde, alimentação e educação. Além disso – como se quisesse provar que todas as grandes crises da humanidade estão interconectadas – a mudança climática tem causado grandes golpes na agricultura da África sob a forma de uma seca épica. Em março, a África do Sul declarou uma emergência nacional quando a seca voltou a castigar seus agricultores, enquanto os campos da África Oriental estavam sendo despojados pela maior praga de gafanhotos em um século. Seca, dívidas e doenças são a trilogia que todos os africanos temem.
A missão impossível da China
Em contraste com as economias atlânticas e grande parte da América Latina, os países mais industrializados do leste asiático, incluindo o Vietnã, mas não o Japão, conseguiram conter o surto inicial com um sucesso admirável, demonstrando capacidades formidáveis do Estado para ações racionais e decisivas. Todas as suas populações têm cobertura nacional de saúde. Os dois casos mais notáveis são Taiwan e Vietnã. Devido à sua proximidade com o continente, a densidade urbana e o grande número de idosos, Taiwan parecia destinado a se tornar uma outra Wuhan. No final de abril, entretanto, o Vietnã havia registrado menos de dez mortes e conseguir evitar o fechamento em massa. Não há mistério nas causas de tanto sucesso: Taiwan construiu o sistema de saúde público número um do mundo e respondeu imediatamente em dezembro aos rumores de um surto semelhante à SARS. Quando Taipei contabilizou seu estoque médico e percebeu que os suprimentos de máscaras estavam curtos, seu Centro Central de Epidemias ordenou que os militares assumissem a produção. A produção diária aumentou de dois para dez milhões de unidades em menos de três semanas. E, em contraste com a RPC e Cingapura, conseguiu isso como uma democracia funcional, sem depender do poder autoritário centralizado ou da repressão em massa.
O Vietnã é uma história ainda mais extraordinária. Embora seja mais pobre do que o resto, possui alguns dos especialistas mais conceituados do mundo em doenças epidêmicas com o Institutos Pasteur na cidade de Ho Chi Minh, além de uma rede nacional de postos de saúde de nível comunitário, treinados para responder aos surtos. Essa combinação de especialização e mobilização de base permitiu enfrentar com sucesso a chegada da gripe aviária e da SARS no início dos anos 2000. Em contraste com a China, também possui um histórico admirável em termos de transparência médica, notificação imediata de grupos de infecção e estreita colaboração com a OMS.”É tentador afirmar que o Covid-19 também está acelerando a mudança do domínio americano para o chinês. Mas a analogia é falha porque exagera a estabilidade da economia chinesa, bem como sua capacidade de tirar o mundo da recessão profunda”No entanto, no cenário mundial a única experiência alternativa que realmente é o sucesso da China continental em suprimir o surto e depois se tornar o principal socorrista em outros países em dificuldades. (Menos conhecido do público mundial é o papel crucial dos protestos em massa na tentativa de galvanizar o regime autoritário de Xi.) O secretário-geral Xi Jinping, é claro, promove a história diante de muitas reviravoltas: beneficiários de empréstimos e de assistência médica chineses, como Erdogan na Turquia e Fernandez na Argentina, devem elevar seus elogios. Mas essa pressão é um pouco diferente da mão pesada de Washington no passado, países menores há muito tempo têm que cantar para os seus banquetes. E agora que Trump abdicou do trono humanitário, apenas um poder tem as habilidades e os recursos gerenciais para ocupá-lo. Pela primeira vez, Pequim está praticamente sozinha no comando de uma crise mundial, testando sua ação contra a inação de Washington e da UE.No século XVII, uma pandemia de peste foi particularmente devastadora para a Itália e – para opinião de alguns historiadores – acelerou a transição de uma economia europeia centralizada no Mediterrâneo para o domínio holandês e inglês. É tentador afirmar que o Covid-19 também está acelerando a mudança do domínio americano para o chinês. Mas a analogia é falha porque exagera a estabilidade da economia chinesa, bem como sua capacidade de tirar o mundo da recessão profunda. O sucesso da China em se tornar o centro do sistema solar da cadeia de valor – e, como resultado, a maior nação industrial e de comércio do mundo – também é o seu calcanhar de Aquiles, pois o colapso do comércio mundial de hoje ameaça levar a uma desglobalização parcial da produção através de uma longa recessão. Embora a China tenha feito grandes avanços no desenvolvimento de indústrias e serviços tecnológicos baseados na ciência, as exportações de bens intermediários e de consumo – de móveis para o quintal a smartphones – continuam sendo seu principal ganha-pão e fonte de divisas. A perda permanente de uma parte significativa desse mercado de exportação, seja pela diminuição da demanda global e / ou repatriamento do investimento em manufatura, confrontaria o Conselho de Estado com uma situação há muito temida: um exército enfurecido de desempregados, fortalecido por dezenas de milhões de pessoas.
Os líderes, é claro, estão cientes da necessidade de reduzir a dependência em relação às exportações, aumentar os salários e fortalecer o mercado interno. Mas a transição se mostrou incrivelmente difícil e o investimento – a segunda grande roda motriz da economia chinesa – preencheu a lacuna. Embora alguns admiradores, evocando as altas taxas de crescimento geradas pelo consumo durável e pela construção de residências da Europa Ocidental e Americana nas décadas de 1950 e 1960, se refiram ao período atual como a “idade de ouro da China”, a realidade é bem diferente. O excepcional da revolução urbano-industrial da China não é a adoção do modelo econômico puxado pelas exportações, comum a outros países asiáticos, mas as suas taxas extraordinariamente altas e sustentadas de investimento em infraestrutura e construção urbana. Isso foi financiado por uma depressão sustentada da representação do trabalho no PIB. Nenhuma grande economia dinâmica em tempos de paz dedicou consistentemente uma parcela tão grande ao investimento ou uma parcela tão pequena ao consumo.
Durante a crise de 2008-09, Pequim contrariou a queda na demanda por exportações com um enorme pacote de estímulos que injetou empréstimos no desenvolvimento de infraestruturas e na construção de moradias, fornecendo suporte vital para empresas estatais em dificuldades. A relação investimento / PIB subiu para 48% em 2012 e depois caiu para estáveis 45%. (Por outro lado, os americanos consomem 70% da renda nacional e investem apenas 15%.) “A escala e a velocidade do boom de investimentos da China”, escreveu uma equipe de economistas da Universidade de Oxford, “é impressionante. A China gastou 4,6 trilhões de dólares em 2014, cerca de 24,8% do total de investimentos mundiais e o dobro de todo o PIB da Índia.” Os empréstimos que financiaram o estímulo também são surpreendentes. “Entre 2000 e 2014 a dívida total da China cresceu de 2,1 trilhões de dólares para 28,2 trilhões de dólares, em preços atuais – um aumento de 26,1 trilhões, maior que o PIB dos EUA, Japão e Alemanha juntos.”
O estímulo pós-2008 também beneficiou os principais fabricantes de componentes da China no leste e sudeste da Ásia – e também na Alemanha, de quem importa máquinas e ferramentas. Não fosse isso, a recuperação global da Grande Recessão teria sido incomparavelmente mais difícil. Mas o preço tem sofrido com uma instabilidade estrutural e com uma dívida em constante expansão. Isso foi francamente reconhecido pelos líderes do país em diversos momentos. No Fórum Econômico Mundial em 2009, o premiê Wen Jiabao, um forte defensor da elevação do padrão de vida no campo, disse à platéia que “a recuperação econômica da China é instável, desequilibrada e ainda não sólida”. No ano seguinte, o vice-premiê Li Keqiang (que se tornou primeiro ministro no final de 2012) reiterou que a unidade de investimento havia criado uma “estrutura econômica irracional” e que “um desenvolvimento descoordenado e insustentável é cada vez mais aparente”. Xi Jinping, em sua ascensão a Secretário-Geral do Partido e depois Presidente, foi responsável por várias reformas importantes, mas a ‘Cinturão Econômico da Rota da Seda – financiado pelo Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura, patrocinado pela China – caracterizou um retorno ao crescimento impulsionado pela construção, agora em escala internacional.
“Uma depressão liderada pela China é mais provável do que uma recuperação liderada pela China”
Há dois anos, uma investigação sobre as perspectivas futuras da China conduzida pelo Banco Central Europeu, encontrou todos os sinais clássicos de superinvestimento e a desinvestimento de recursos: um agudo excesso de capacidade produtiva na indústria básica, gastos em infraestrutura que excedem a demanda potencial, construção especulativa de moradias inacessíveis para a maior parte das famílias, conversão desnecessária de terras agrícolas em cidades, gastos lamentavelmente inadequados em saúde pública e educação e o que só pode ser descrito como um sistema de banco estatal que gerencia a dívida por meio de truques de prestidigitação. Enquanto isso, os mecanismos de investimento estão engasgando. “A elevação da relação entre capital e outputs”, explica o estudo do BCE, “sugere que o impulso ao crescimento econômico para novos investimentos está diminuindo”. Em outras palavras, o investimento não está elevando a produtividade geral aos níveis esperados e os gastos mal administrados em capital fixo estão afetando negativamente o PIB. Assim, a incrível máquina de crescimento de Pequim “está chegando a um ponto de virada. A queda do crescimento da produtividade e a diminuição dos retornos implicam que a China esteja atingindo os limites do “antigo” modelo de crescimento de acumulação dos fatores de produção. Continuar pressionando contra esses limites, contando com mais investimentos e dívidas, só piorará os desequilíbrios existentes e ameaçará a sustentabilidade do crescimento a médio prazo. ”
É por isso que é impossível para a China repetir seus feitos pós-2008. Uma depressão liderada pela China é mais provável do que uma recuperação liderada pela China. chineses. Isso causaria uma paralisia sincronizada do crescimento em todos os três grandes blocos econômicos da economia mundial – América do Norte, União Europeia e Leste da Ásia – sem que qualquer um seja capaz de impulsionar uma recuperação por ação unilateral. A parceria bilateral que, em teoria, pode frear o colapso é um plano coordenado de gastos dos Estados Unidos e da China, mas o relacionamento deles, deixando de lado a política, é estruturalmente o elo mais fraco ou, se você preferir, o mais desequilibrado da economia mundial. É uma atração entre opostos: os Estados Unidos consomem demais, a China superproduz; Washington avança com um enorme déficit comercial, mas a China financia a dívida para permitir que os americanos continuem sua onda desequilibrada.
Os populistas americanos de extrema direita enxergam apenas um lado dessa troca: os custos domésticos para o empregos causados pela terceirização da cadeia de produção e o balanço comercial negativo dos Estados Unidos. Eles ignoram ou simplesmente desconhecem o papel recíproco da China como principal credor da dívida nacional dos EUA e parecem acreditar, fantasticamente, que uma guerra econômica contra o principal credor de Washington seria relativamente barata, pois recuperaria milhões de empregos do leste da Ásia. De fato, as cadeias de produção de componentes são aquelas conduzidas de cima para baixo por distribuidores e varejistas finais, como o Walmart ou a Target, cujo estoque de importação consiste em bens de consumo baratos e produtos eletrônicos. Diferentemente das cadeias de produção orientadas pelo produtor (como General Motors e seus fornecedores de peças, por exemplo), a maior parte das linhas de produtos de consumo é facilmente automatizável – preferencialmente do outro lado da fronteira mexicana -, portanto, o repatriamento de investimentos não significa o retorno de empregos anteriormente perdidos ou uma nova primavera para a indústria nos EUA. No entanto, essa é a ilusão que reforçou a base republicana no meio-oeste americano.
No entanto, desde 2008, ambos os principais partidos políticos americanos se agitam pelo retorno de um inimigo externo de grandes proporções, embora seja menos escorregadio e ou evasivo, como a Al-Queda ou o ISIS. A preferência de Hillary Clinton apontava para uma nova guerra fria com a Rússia; Trump escolheu a China. Primeiro veio a guerra comercial em 2017, e agora o Perigo Amarelo (Yellow Peril) Covid. Seu comitê de reeleição agora está testando o eleitorado para o lema ‘A China deve pagar pela pandemia!’ como principal motivo de campanha. (De acordo com uma pesquisa recente da Pew, um quarto dos americanos, o público geral da Fox News, acredita que o coronavírus foi criado em um laboratório de bio-guerra chinês e deliberadamente lançado contra os EUA.) A crise permite que os nacionalistas econômicos marchem sob a bandeira fúnebre de Steve Bannon (retornado recentemente ao Conselho de Segurança Nacional) para agitar por uma ‘dissociação forte’ das duas economias, enquanto outros querem puni-los, confiscando eletronicamente os 1,1 trilhão de dólares em títulos do tesouro dos EUA que a China possui (o que pode ser considerado um ato de guerra sob a lei internacional). Embora um eventual governo de Biden atenuasse a retórica belicosa, há forças poderosas dentro do Partido Democrata que defendem uma linha dura em direção à Pequim, em duas frentes, econômica e militar.
“A globalização capitalista se tornou biologicamente insustentável?”
Até o momento, a China não brandiu uma ameaça de retaliação financeira. Primeiro, por medo de perder seu maior mercado de exportação; segundo, porque a valorização do dólar durante as crises aumenta o valor de suas reservas. Mas se o comércio com os Estados Unidos continuar se deteriorando e as principais cadeias de produção se revelarem instáveis, diminuirão as barreiras de uma agressão da parte de Pequim. Isso acrescentaria uma dose grande e incalculável de caos à turbulência geoeconômica existente. Todo regime capitalista e capitalista de estado procuraria não apenas bodes expiatórios, mas também alvos para seus mísseis em inimigos mortais para justificar a fúria populista.
Temos que fazer, em resumo, duas perguntas sem precedentes sobre o futuro da ordem mundial neoliberal. Primeiro, a globalização capitalista se tornou biologicamente insustentável? A resposta, é claro, depende se a cooperação internacional de alto nível e os gastos maciços em saúde pública configuram perspectivas realistas. Temo que não sejam. Segundo, as infra-estruturas logísticas e financeiras da globalização são sustentáveis em uma era pós-hegemônica? Elas podem funcionar, em outras palavras, sem serem substituídas por uma fusão de soberania monetária e liderança global em uma única superpotência disposta a atuar como gerente do mercado mundial? Há um precedente a ser lembrado: a fragmentação regional do comércio mundial durante os anos 30, quando os dominantes Estados Unidos abdicaram de seu papel de credor da Europa e se voltaram para soluções para a Depressão. A situação de semi-autarquia reorientou as potências imperialistas europeias em direção à modernização da exploração em suas colônias tropicais, enquanto a Alemanha se voltou para a conquista das produções de grãos da Ucrânia e do petróleo Cáspio, com consequências catastróficas para a humanidade. Pouquíssimos economistas e especialistas em política externa podem imaginar um mundo ao mesmo tempo rapidamente desglobalizado e rearmado. Mas, da mesma maneira, será que algum deles poderia convencer o público de que nos recuperaremos rapidamente como nos velhos dias de um índice Dow de 28.000 pontos em meio aos agradáveis carnavais de Davos?
Em busca da solidariedade
O período sombrio que se aproxima rapidamente do horizonte acusará o capitalismo como ameaça à sobrevivência humana. Um promotor poderia apontar quatro acusações. Primeiro, o capitalismo como sistema mundial é incapaz de gerar renda e futuro social para a maioria da humanidade. Segundo, o capitalismo não pode descarbonizar a economia ou adaptar as sociedades mais pobres para suportar as consequências extremas do aquecimento global, condições as quais que elas desempenharam pouco papel em gerar. Terceiro, o capitalismo não pode garantir segurança alimentar ou acesso à água de forma sustentável. Quarto, o capitalismo bloqueia a tradução de avanços biológicos revolucionários para a saúde pública. São crises convergentes, inseparáveis umas das outras, e precisam ser vistas em seu conjunto complexo, não como questões separadas. Para colocar isso em linguagem mais clássica, o capitalismo financeirizado de hoje tornou-se um grilhão absoluto no desenvolvimento das forças produtivas necessárias para a sobrevivência de nossa espécie.
“A ilusão mais perigosa, no entanto, é a nacionalista: como se uma depressão global pudesse ser evitada por uma simples soma de respostas nacionais independentes e descoordenadas.”
Michel Aglietta, um dos economistas mais respeitados da Europa, argumenta de maneira semelhante. Ele escreveu recentemente que três concepções errôneas perigosas governam a maioria dos discursos oficiais sobre a pandemia. A primeira é a ideia de que devemos deixar de lado as ações contra as mudanças climáticas e a destruição de habitats para focar na ameaça viral. Isso ignora a forma extensa e profunda com a qual o fenômeno das doenças emergentes está ligado às mudanças climáticas, à agricultura industrial e à criação de gado, bem como à crescente destruição da biodiversidade, especialmente as florestas tropicais. “Em última instância, a doença e o clima são movidos por dinâmicas semelhantes, mesmo que as temporalidades sejam diferentes. Ambos são processos que evoluem sob incerteza radical que, em algum ponto de inflexão desconhecido, pode sair do controle. O segundo erro é uma subestimação do papel das dívida, doméstica e internacional, crescendo quase sem controle desde 2009, potencialmente acelerando e ampliando a atual crise. “O que mais se distingue ao longo da última década”, ele argumenta, “é a globalização da lógica [da financeirização].” A pandemia acabará produzindo um pânico financeiro – uma demanda incessante por dinheiro – que, por sua vez, levará ao desinvestimento na economia real, agora prejudicada pela grande capacidade excedente. As cadeias de produção industrial e o comércio de bens intermediários, ele argumenta, são particularmente vulneráveis.
A ilusão mais perigosa, no entanto, é a nacionalista: como se uma depressão global pudesse ser evitada por uma simples soma de respostas nacionais independentes e descoordenadas. “Um novo acordo verde global (Global Green New Deal) é o único futuro possível … Precisamos erradicar a visão neoliberal do mundo que subordina tudo ao fetiche do” mercado “sem reconhecer sua dependência em relação à natureza. Os mercados transformam bens comuns em males comuns. Como foi o caso do New Deal, o Global Green New Deal (GGND) exige a liderança do poder público sobre o privado.” Os ‘eixos estruturais’ do GGND devem ser a conversão da indústria em energia verde, um movimento em direção às cidades de baixa emissão de carbono e um imenso esforço global para restaurar habitats e agricultura sustentável. Para conseguir isso, o investimento público deve se libertar da “tragédia dos horizontes”, a lógica saqueadora e de curto prazo dos mercados financeiros. “A transformação da estrutura da economia produtiva exige planejamento estratégico.”
Aglietta, acredito, está correto ao dizer que o neoliberalismo abriu a caixa de Pandora – e que apenas a cooperação planetária na escala de um novo GGND pode garantir uma sobrevivência comum. Também devemos valorizar sua insistência de que precisamos olhar para a nova era através das lentes da ecologia política, reconhecendo que tudo agora é uma questão ambiental. Mas ele usa eufemismos para contornar a questão: a democratização do poder econômico. A emergência atual nos leva muito além do ponto em que podemos enquadrar isso como uma questão de lei antitruste, uma regulamentação mais rígida ou colocar trabalhadores em conselhos corporativos. A condição prévia inevitável para a “liderança pública da economia” é a propriedade social de setores estratégicos, como a produção farmacêutica, os combustíveis fósseis (retreinar trabalhadores e fechar poços e minas), os grandes bancos e a infraestrutura digital da qual a vida do século XXI depende. (banda larga, nuvem, mecanismos de pesquisa e mídias sociais). O retorno, em outras palavras, do projeto socialista revolucionário.
“No campo de batalha global, então, as oportunidades e os perigos para uma nova esquerda estão provavelmente igualmente distribuídos.”
Digo “revolucionário” porque o poder popular, mesmo no bloco da OCDE, enfrentará cada vez mais as capacidades repressivas do estado de vigilância aliado à política antidemocrática do populismo autoritário. É provável que a violência social se torne comum sob muitas formas à medida que vulcões de desespero entrem em erupção em todo o mundo. Em alguns casos – por exemplo, onde governos nacionalistas extremos foram mais bem-sucedidos em desviar a raiva para potências estrangeiras ou minorias locais como Índia ou Polônia – os regimes de direita podem se tornar abertamente neofascistas. Em outros países, como no México, onde governos progressistas quebraram promessas importantes, os resultados políticos permanecem imprevisíveis. Mas nos Estados Unidos, assim como no Brasil, os ventos sopram forte para a esquerda. Em retrospecto, desconfio que os historiadores julgarão o desenvolvimento mais surpreendente da América do início do século XXI não ter sido Trump, mas o surgimento repentino de um amplo movimento multirracial que se identifica como socialista. A radicalização dos trabalhadores da saúde (17 milhões nos EUA) podem desempenhar o mesmo papel na década de 2020 que os trabalhadores da indústria automobilística na década de 1930.
No campo de batalha global, então, as oportunidades e os perigos para uma nova esquerda estão provavelmente igualmente distribuídos. Mas vitórias socialistas em um país ou outro não levarão a um GGND diante da ausência de um novo internacionalismo. A erosão da solidariedade internacional é provavelmente mais evidente na nova esquerda americana; nos debates das primárias dos democratas, por exemplo, nem Sanders ou Warren falaram sobre a pobreza global ou sobre a interação catastrófica entre secas e guerras no Sahel e na região do Crescente Fértil. Embora um ‘Novo Acordo Verde’ seja a bandeira de batalha do movimento progressista, raramente são incluídos fundos de adaptação às mudanças climáticas para países pobres ou um Plano Marshall para as nações quebradas e pauperizadas pelas intermináveis guerras dos EUA no Oriente Médio. Às vezes, o foco interno da esquerda se aproxima perigosamente de uma versão do “EUA em primeiro lugar” (America First).
Somente através de campanhas ativas e persistentes é que podemos estabelecer novas bases para a solidariedade internacional. Como a pandemia agora se alastra pela África e no sul da Ásia, movimentos socialistas e verdes na América do Norte e na Europa precisam urgentemente se unir a grupos religiosos e humanitários para fazer as seguintes exigências:
1. A reativação do princípio consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos de que a boa saúde é um direito universal.
2. Um grande esforço de ajuda internacional para impedir que milhões de pessoas morram na África e em outras regiões pobres devido aos efeitos combinados entre as doenças e a fome.
3. Bilhões de dólares a mais investidos em linhas de produção de vacinas para garantir um suprimento adequado para toda a raça humana. Todos os países devem ter direitos iguais ao crescente estoque de vacinas e medicamentos antivirais. Há um grande perigo de os países ricos controlarem os suprimentos.Em um mundo em risco, uma visão revolucionária não exclui a busca da comunhão com todos que abraçam os principais valores humanistas. Atualmente, na verdade, existem apenas dois líderes mundiais que invocam consistentemente a urgência da solidariedade humana: um é o Dalai Lama e o outro é um fã de futebol argentino que mora em uma casa grande em Roma. Devemos lembrar que todos os grandes revolucionários – Paine, Danton, Garibaldi, Marx, Luxemburgo, Lenin, Trotsky e Che – conceberam sua missão não apenas como a emancipação das classes trabalhadoras, mas a libertação de toda a humanidade.
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