Insular ou não, eis a questão

Publicado por Revista Paná em

Na natureza, os seres se relacionam uns com os outros para que sobrevivam. Alguns comem plantas, outros comem animais, alguns dependem de um intermediário nesse processo alimentar, outros de vários intermediários. A partir dessa análise, constrói-se uma rede de interações, no caso alimentares, chamada teia trófica. Quanto mais recursos alimentares diferentes uma espécie consumir, mais setas saem dela nessa representação gráfica, ligando-a às espécies consumidas.

Photo by Tom Winckels on Unsplash

            Há casos em que a espécie consumidora depende de poucas espécies diferentes, às vezes até mesmo de uma só; nesse caso, a representação gráfica é bastante simples- uma só reta sairá da mesma ligando-a ao recurso solitário. Isso significa que, quaisquer problemas que afetem a disponibilidade desse recurso em dado momento, afetarão igualmente a sobrevivência da espécie que depende exclusivamente dele.

            Por que então a evolução caminharia para uma relação tão estreita, tão especializada, tão exclusiva, tão frágil? Os motivos são vários e dependem de cada contexto, mas uma das explicações pode ser a competição por recursos, onde para a espécie consumidora, se especializar em um determinado recurso a fim de utilizá-lo com total eficiência pôde ser mais vantajoso que competir por outros vários com outras tantas espécies consumidoras coexistentes naquele tempo e espaço, por exemplo. Geralmente isso é observado em ilhas, onde os recursos são mais limitados devido à limitação espacial. Não à toa que Darwin conseguiu forjar com maior acurácia a teoria da seleção natural num arquipélago, Galápagos. Lá observou que as espécies de tentilhões (Geospiza sp.) nativas apresentavam diferenças morfológicas, especialmente nos bicos, resultantes de anos de evolução causadas pela especialização no uso dos recursos existentes nas diferentes ilhas.

            Por não ser a evolução um processo de melhora, mas sim de adaptação às condições existentes de modo a garantir a sobrevivência para cada espécie envolvida na corrida, ela não contempla um horizonte de longo prazo ou de condições complexas de modo a escolher o que seria melhor; ela acontece. Os reflexos dela num recorte posterior, inseridos num mundo alterado, em constante mudança, são lidos por nós de maneira quase contemplativa: não há muito que fazer (exceto, é claro, quando as mudanças ambientais são causadas por nós, seres humanos, e afetam a saúde dos ecossistemas, os quais frequentemente também dependemos, ainda que não reconheçamos). Nesse sentido, o que podemos tirar de lição desse fenômeno natural que possa nos ajudar enquanto espécie que também faz parte da corrida evolutiva (e que pensa que está ganhando de todas as outras)?

            Assim como no mundo natural, podemos desenhar redes de interação que exemplificam, de modo geral, nossas vidas. Interações relacionadas ao nosso sustento financeiro, interações relacionadas às nossas fontes de prazer, e, por que não, também, interações alimentares. As redes que podem ser representadas beiram ao infinito. Quanto mais elos nas redes, maior a estabilidade do objeto central, seja tentilhão, seja humano.

            Mas a grande sacada no exercício todo Pepe Mujica nos ajuda a entender: “Ser pobre não é ter pouco. A verdadeira liberdade está em ter pouco”. O pouco em questão, fonte de nossa liberdade, seria então o número de redes que dependeríamos pra viver. E aí, o Viver, com letra maiúscula, aquele que vai além da definição de viver pautada em elementos químicos como oxigênio, H2O e etc., fica a critério de cada um, dentro de suas definições de dignidade, necessidade e, até mesmo, felicidade.

            Algo como recursos alimentares, abrigo, relações sociais e prazer, por exemplo. Quatro redes que serviriam muito bem às definições de milhões de pessoas em todo o mundo. Daí sim, dentro de cada rede, quanto maior o número de elos, de fontes que alimentam o aspecto central da rede, mais estável e garantida, teoricamente, uma vida como a tenha definido inicialmente: digna, possível, feliz.

            Destrinchando então nossas redes, podemos nos surpreender com o número de aspectos que julgamos necessários inicialmente, e a escassez de elos que alimentam essas nossas tão insubstituíveis necessidades. Quantos de nós produzem ao menos parte do próprio alimento? Pode-se argumentar que não há necessidade de tal prática, uma vez que temos disponíveis mercados, quitandas e açougues a cada esquina que já desempenham o papel muito bem. Voltemos então ao início de 2018, quando por questões tarifárias, principalmente, a classe dos caminhoneiros do Brasil decidiu parar. De que nos adiantou uma infinidade de estabelecimentos que nos entregam os recursos alimentares, se a maioria esmagadora deles depende de poucos elos: polos periféricos de produção de alimentos, transporte unimodal? Nem entremos aqui no mérito da qualidade do nosso alimento no que diz respeito a questões de saúde, sociais e de impactos ambientais.

            Os desdobramentos do processo reflexivo são pessoais, encontram justificativas e entraves específicos para cada contexto, mas chegam sempre ao mesmo pano de fundo final: em redes somos mais fortes. O desenvolvimento de estratégias vindas da economia colaborativa, como compartilhamento de bens e serviços, o fortalecimento das relações de confiança, o que demanda núcleos sociais menores e mais próximos, o resgate de saberes tradicionais, menos enlatados para caberem na globalização compulsória em que vivemos, todos esses aspectos têm ganhado força num momento em que bate cada vez mais à nossa porta a realidade de que dividimos a mesma casa comum, independente do endereço em que chegam nossas correspondências.

            A globalização ambiental é uma realidade pouco falada; os elementos naturais, em diferentes graus, se relacionam entre si, e, consequentemente, os impactos sobre eles também, saindo para além de delimitações que nossa ingênua percepção possa colocar. Melhor exemplo que o aquecimento global não há (quer dizer, pode ser que ainda não tenhamos descoberto).

            Seguindo as tendências não só ideológicas, dos discursos de paz e amor, esotéricos ou seja lá como os denominemos, mas também científicas, que têm mostrado que no mundo selvagem (aquele que chamamos de natureza cruel) os ecossistemas são também fortemente moldados por processos pautados em cooperação, além da antes hegemônica competição, assumamos nosso lado animal e cooperemos mais uns com os outros. Graças a milhões de anos de evolução, podemos reivindicar nossa humanidade sobre os tentilhões exclamando, afinal: “Nenhum homem é uma ilha”!

Marcella Falcão, Ecóloga e Ativista Vegana


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