Amor, Estranho Amor – Como um filme nacional se tornou instrumento de sexismo

Publicado por Revista Paná em

Xuxa e Marcelo Ribeiro, que interpreta Hugo no filme.

Por Xerxes X.

O que compõe um ídolo está além de sua imagem marcante. A opinião pública sobre os ícones faz parte diretamente da composição de imagem deste grupo seleto de pessoas que tiveram seus nomes escritos na História e no imaginário popular. Quanto mais famoso, mas controvérsia de cria em torno de uma personalidade artística.

No início dos anos 1980, ainda em meio ao Regime Militar, o cinema ainda vivia o paradoxo das pornochanchadas, termo este que é a junção das palavras “pornô” e “chanchada”, que se tornou popular na década anterior com a liberação dos costumes. Influenciado pelo cinema italiano, a ênfase desse movimento no cinema tinha como centro o erotismo. Inúmeros são os títulos que estiveram em cartaz até o final daquela década utilizando da linguagem de pornochanchada, mas um desses títulos ganhou destaque não pelo seu enredo, ou roteiro, ou direção, mas por causa de um nome em seu casting. Este filme é Amor Estranho Amor e este nome o de Xuxa Meneghel.

Xuxa aos 16 anos no ínico de sua carreira de modelo

Ainda no começo dos coloridos anos 1980, a moda contava com dois rostos de destaque em desfiles e editoriais, eram Luiza Brunet e Xuxa Meneghel que estampavam a maioria das revistas da época com seus bustos e quadris que fugiam do padrão de beleza esguio exigido para época. Xuxa deu início à sua carreira aos dezesseis anos, quando foi descoberta em um trem no subúrbio do Rio de Janeiro por um produtor da Editora Bloch, que lhe seguiu até sua casa e falou com sua mãe, Alda Meneghel, que receosa lhe deu uma foto da jovem que em pouco tempo depois dava início à sua carreira estampando a capa da Revista Carinho. A partir disso os números de trabalhos cresceram e antes de completar maioridade já sustentava toda sua família, que naquele momento trabalhava em função de sua carreira.

Em um desses trabalhos, Xuxa conheceu o jogador Pelé. Que se interessou por ela e ligou para sua casa. O telefonema foi atendido pelo seu pai, Floriano Meneghel, que sem acreditar na identidade de quem estava do outro lado da linha desligou o telefone. Iniciaram um romance que automaticamente colocou Xuxa no lugar de oportunista. É um dado histórico que relacionamentos entre modelos e jogadores de futebol são descartáveis em sua maioria, mas o relacionamento entre os dois se estendeu por sete anos. E foi Pelé quem a convenceu a participar do filme Amor Estranho Amor.

Primeira capa de Xuxa

Em 1982, a produção que contava com Tarcísio Meira, Vera Fisher e Mauro Mendonça ganhou as telas do cinema. Na história um homem compra um casarão antigo e ao visitar o imóvel se depara com lembranças da infância que viveu ali. E o filme parte para uma série de flashbacks onde este figurão se recorda que sua avó lhe deixa sob os cuidados da mãe, Vera Fisher. Ao adentrar na casa o garoto de idade aparente de treze anos causa um certo furor entre as garotas de programa que trabalhavam no lugar. A atriz Matilde Mastrangi protagoniza uma das primeiras cenas picantes do longa, quando do alto de uma escada se insinua para o garoto que é puxado pela mãe para seus aposentos. A personagem de Xuxa, Tamara, é uma jovem trazida do Sul e ainda menor de idade colocada à venda. E a primeira cena entre Xuxa e Marcelo Ribeiro, que interpretou o garoto, mostra o garoto subindo as escadas que dão para um sótão. Ali se encontram um grupo de costureiras que criam uma fantasia de ursinho no corpo seminu de Xuxa, que em cena parece uma estátua grega. A cena arrepia tamanha a beleza daquela fotografia. Xuxa jovem de seios à mostra intriga o garoto que lhe questiona o motivo de estar vestida daquele modo. A mesma sensualmente lhe diz que será dada de presente, que era uma ursinha macia e pegando as mãos do garoto e levando ao seio repete que é macia…. Macia…. Macia…. Nada muito diferente dos comerciais do Monange que a mesma Xuxa fez anos mais tarde vendendo o produto que prometia deixar a pele macia…. Macia…. Macia…

A história segue com a personagem de Vera Fisher tomando antipatia por Tamara, que debochada em uma noite vai até onde o garoto dormia e tenta seduzi-lo. Deita-se nua sobre o corpo do garoto, mas antes de conseguir consumar qualquer coisa é surpreendida pela personagem de Vera que lhe enche de tapas. E aí acabou o elo entre o personagem de Xuxa e do garoto. Suficiente para gerar uma discussão que se estende por décadas.

O que quase ninguém se deu ao trabalho de pesquisar antes de se tornarem críticos de cinema e de comportamento é que Xuxa, quando fez o filme, ainda não tinha maioridade já que foi emancipada anos antes para poder trabalhar e executar trabalhos de nu, que foram recorrentes no início de sua carreira. E que o filme aborda milhares de temas importantes a serem discutidos: pedofilia, tráfico de jovens para prostituição e abuso sexual incestuoso (no filme o garoto transa com a própria mãe em uma cena bem mais quente que a de Xuxa).

Vera Fisher e Xuxa

Um ano depois do lançamento do filme Xuxa ganhou a frente do programa infantil Clube Da Criança na extinta Rede Manchete e em 1986 foi para a Rede Globo, onde apresentou o programa infantil de maior sucesso na História da televisão brasileira, o Xou da Xuxa e que a consagrou como Rainha dos Baixinhos e um ícone de fama internacional. Com o sucesso as controvérsias apareceram, primeiro a lenda urbana de que Xuxa depositava em seus discos mensagens satânicas, segundo o filme foi ressuscitado pelo mercado pirata na tentativa de sujar a imagem da apresentadora. Xuxa durante anos deteve os direitos do filme para que o mesmo não fosse comercializado, o que gerou revolta por parte de Vera Fisher que estava envolvida também na produção do mesmo. Ocorre que sob o manto da Rede Globo, um filme que gerou tanta polêmica ia contra a imagem de Xuxa que naquele momento trabalhava exclusivamente para o público infantil. A capa do filme foi modificada quando a apresentadora se tornou um produto e passaram a divulga-lo com uma foto do elenco em preto e branco tendo Xuxa nua em colorido.

A opinião pública sobre um filme raro e quase nunca assistido pela massa é de que se trata de uma produção pornográfica e Xuxa uma atriz pornô, o que não é verdade. Em 2014 Xuxa foi convidada para a votação que visava a alteração do Estatuto da Criança e do Adolescente e a inclusão da Lei da Palmada, que conhecida como Lei Menino Bernardo criminaliza castigos físicos contra crianças e adolescentes e que a artista defende desde sempre. A bancada evangélica era contra a alteração. Mas o então deputado. Pastor Eurico, não se conteve e hostilizou Xuxa dizendo que a presença dela era um desrespeito à família tradicional brasileira. “A conhecida Rainha dos Baixinhos, que no ano de 1982 provocou a maior violência contra as crianças”, se referindo ao filme. Xuxa, que não podia falar se conteve a fazer um coração com as mãos em sinal de “mais amor” àquele que prega a palavra de Cristo. O ato infeliz do deputado, causou repúdio pela maioria dos deputados presentes e mostrou o quanto a ignorância e a interpretação equivocada é presente em torno do filme e de Xuxa.

Naquele mesmo ano Xuxa em entrevista para o Fantástico, falou pela primeira vez sobre os inúmeros abusos sexuais que sofreu durante a infância. Só aquela matéria fez com que os números de denúncias ao Disque 100 aumentassem vertiginosamente. E esta é uma causa abraçada por ela que sempre aborda a pauta sem muito medir o que dizer sobre sua experiência e os impactos que aquilo teve em sua vida.

Xou da Xuxa 1988

O ator Marcelo Ribeiro, nos anos 2000 esteve em alguns programas de TV falando como foi a experiência, frisando que aquilo se tratava de uma obra fictícia. E embora tenha realizado trabalhos na indústria pornográfica pela produtora Brasileirinhas, não vestiu o personagem de carrasco. Já Vera Fisher deu inúmeras entrevistas deixando claro nunca ter perdoado Xuxa pelo veto à comercialização do filme.

Hoje temos uma Xuxa beirando a casa dos sessenta anos, em cada entrevista demonstrando ter uma maior consciência de classe e sem medo de abraçar causas que poderiam interferir em sua vida artística. Um exemplo é a pauta LGBTQI, que apoia com fervor e que segundo corre nos bastidores gerou um desconforto responsável pela não continuidade em seu contrato com a Rede Record, presidida por Edir Macedo, o maior nome na Igreja Universal do Reino de Deus. Nessas entrevistas Xuxa incentiva que todos possam ter acesso ao filme e que o vejam sob a perspectiva crítica de que seu enredo ainda é atual e que o que mostra tem urgências que a mesma segue lutando contra: o bem-estar de seus baixinhos.

O Filme Amor Estranho Amor, foi dirigido por Walter Hugo Khouri e será exibido pela primeira vez na televisão pelo Canal Brasil (do Grupo Globo) na madrugada de 12/02, marcando o fim de um longo tempo de proibição.

“Não quero proibir Amor, Estranho Amor nem banir o filme da minha carreira. Também não posso renegar que posei na Playboy. O que há é que esse filme foi produzido antes que eu começasse a trabalhar para crianças. Era um papel minúsculo, que os produtores astutamente, resolveram explorar de forma que considero inadequada. Fizeram aquele cartaz e criaram slogan ‘Veja o que Xuxa faz com seu baixinho’. E eu sou contra exploração grosseira. Quer transformar em uma safadeza, que mostrar? Vai ter que pagar. Não dou mole. Ponho advogado em cima!” – RAINHA NÉ MORES?

Por Xerxes X.


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