Da África ao Afro

Publicado por Revista Paná em

Uso e abuso da África entre os intelectuais e na cultura popular brasileira durante o século XX

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Série Rizoma.Net 005

Por Livio Sansone Tradução de Priscila Farias

Durante o intercâmbio transatlântico que levou à criação tanto da cultura negra tradicional quanto da moderna, a ‘África’ tem sido incessantemente recriada e desconstruída. A ‘África’ tem sido um ícone contestado, tem sido usada e abusada, tanto pela intelectualidade, quanto pela cultura de massas; tanto pelo discurso da elite quanto pelo discurso popular sobre a nação e os povos que supostamente criaram e se misturaram no Novo Mundo; e, por último, tanto pela política conservadora como pela progressista. Na América Latina, na verdade, a ‘África’ tem sido não só parte da construção da cultura negra, da cultura popular e de um novo sistema religiosa sincrético, mas também do imaginário associado à nação moderna e, em geral, à modernidade e ao Modernismo (Rowe e Schelling, 1991). Imagens, evocações e (ab)usos da ‘África’ têm sido, portanto, resultado de uma interação e de um conflito entre intelectuais brancos e lideranças negras, entre as culturas popular e de elite, e entre ideias políticas desenvolvidas na Europa Ocidental e nos Estados Unidos e suas reinterpretações na América Latina. Ou seja, a ‘África’ no Brasil tem sido em grande medida o resultado do sistema de relações raciais, muito mais do que da capacidade de preservar o que Herskovits (1941) chamou de africanismos. Se aceita este ponto de vista, não há surpresas, portanto, em constatar que tanto o conformismo quanto o protesto se relacionaram e criaram sua própria ‘África’.

Ao focalizar o Brasil, especialmente a cidade de Salvador da Bahia e sua região, este texto tenta explorar estas práticas durante o século XX na cultura intelectualizada e no discurso oficial sobre a nacionalidade, assim como nas suas versões populares. Ele também descreve como a ‘África’, ou seja, as interpretações de objetos e traços considerados como sendo de origem africana, têm sido peças-chave no processo de mercantilização das culturas negras – ou seja, na produção do que podemos chamar de “objetos negros”.

Falando de forma geral, no Brasil, e talvez em toda a América Latina, os discursos da elite e dos intelectuais, e o discurso popular sobre a origem africana da sociedade e da cultura raramente têm sido comparados. A maioria dos relatos se baseia na verdade exclusivamente no primeiro. Embora eu vá tentar aqui fazer um esboço dos desenvolvimentos históricos de tal processo desde as vésperas da Abolição da Escravatura em 1888, até hoje, minha ênfase será no período que se inicia no final dos anos 70 – na redemocratização do Brasil.

Deixe-me primeiro dar uma definição de cultura(s) negra(s) adequada ao objetivo deste texto. As populações definidas como negras, no Novo Mundo, e na Diáspora Caribenha na Europa, têm produzido uma variedade de culturas negras e de identidades que se relacionam, de um lado, ao sistema local de relações raciais e, de outro, às históricas similaridades internacionais, que derivam de uma experiência comum como escravos, e a fenômenos mais recentes, internacionalizantes, que resultam do movimento em direção à globalização das culturas e das etnicidades. A cultura negra pode ser definida como a específica subcultura de pessoas de origem africana dentro de um sistema social que enfatiza a cor, ou a descendência a partir da cor, como um importante critério de diferenciação ou de segregação das pessoas. As culturas negras existem em diferentes contextos: elas diferem em sociedades que são predominantemente brancas e em sociedades nas quais a maioria de sua população é definida como não-branca, mas uma norma somática que prevalece é a que coloca os indivíduos com traços definidos como africanos ou negroides na base da hierarquia social, ou próximos a esta base (cf. Whitten e Szwed, 1970:31). A cultura negra é por definição sincrética (Mintz, 1970:9-14) (1) . Uma força central específica da cultura negra é o sentimento de ter um passado em comum como escravos e desprivilegiados. A África é utilizada como um banco de símbolos do qual são sacados símbolos de uma forma criativa (Mintz e Price, 1977). Ao mesmo tempo, a cultura negra é também, em alto grau, interdependente da cultura urbana ocidental. Na verdade, como Paul Gilroy sugeriu, a cultura e a identidade negras são criadas e redefinidas através de uma troca triangular de símbolos e ideias entre a África, o Novo Mundo e a Diáspora negra na Europa. Por exemplo, as ideias de negritude e de pan-africanismo criadas no Novo Mundo sem dúvida foram inspiradas tanto por intelectuais africanos e suas lutas pela independência como por imagens de que sociedades africanas eram prioritárias para a colonização europeia. Este processo de construção das culturas negras tem criado os contornos de uma área cultural transnacional, multilinguística e multi-religiosa – o Atlântico Negro (Gilroy, 1993). No entanto, este processo também deu às culturas e às etnicidades negras um status especial no mundo das relações interétnicas.

Por um lado, está origem multiétnica e transnacional das culturas negras no Novo Mundo tem de várias formas antecipado a nova etnicidade característica da última fase da modernidade – e mostra que nem tudo nas novas etnicidades é realmente novo! Por outro lado, num mundo onde o ‘valor’ das culturas e identidades étnicas é sua diferença em relação à cultura urbana ocidental, as culturas negras não gozam do reconhecimento oficial das “culturas étnicas estabelecidas” (como por exemplo, uma língua ou uma minoria imigrante num país industrializado) e as pessoas negras têm maiores problemas que grande parte das outras minorias étnicas em se definirem como uma comunidade cultural ou politicamente distinta. A razão para o fracasso por parte das sociedades dominantes em legitimar a cultura negra faz parte do processo de utilização histórica de marcadores raciais para manter a hierarquia dentro de específicas economias e sistemas políticos nacionais. Desta forma, estou bem mais preocupado com a criatividade do que com a preservação de possíveis ‘africanismos’, com a maneira pela qual a ‘África’ é reinventada por razões políticas do que com a capacidade de preservar a cultura africana através de séculos de opressão.

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O Brasil foi o país que recebeu o maior número de escravos vindos da África. As estimativas vão de três a 15 milhões de africanos deportados para a costa brasileira. O comércio de escravos começou mais cedo e terminou mais tarde que em qualquer outro país do Novo Mundo. As terríveis condições de vida, os baixos custos dos escravos em certos momentos da história e a relativa proximidade em relação à África são três razões-chave para o fato de África e Brasil terem tido um contato muito maior do que o intercâmbio que ocorreu entre a África e a outra grande sociedade escravagista – os Estados Unidos. Aqui não há tempo nem espaço para expandir o argumento; deixe-me apenas dizer que tudo isto fez com que o Brasil tivesse em pouco tempo a maior concentração de descendentes de africanos fora da África. A origem dos escravos no Brasil era e ainda é controversa. Em geral se aceita que eles vieram, em sua maioria, do Golfo da Guiné e da região em torno do rio Congo (Miller, 1999; Côrtes de Oliveira, 1999). Os escravos eram postos para trabalhar em várias atividades; em primeiro lugar, nas plantações de cana de açúcar, depois nas minas, nas plantações de café e na criação de gado. Certamente, uma parte dos escravos trabalhou em serviços domésticos, enquanto outros ainda se engajaram numa série de atividades, da pesca ao comércio ambulante.

Alguns escravos conseguiram desenvolver suas próprias atividades econômicas e ganharam dinheiro em seu tempo livre. Este dinheiro era frequentemente utilizado para comprar a alforria, que, embora fosse difícil de ser conseguida, no Brasil era em geral mais facilmente alcançada que nos Estados Unidos.

Ao Estado da Bahia, que sempre teve um papel central na construção da ‘África’ no Brasil, será dada uma atenção especial neste texto. No passado, este estado e a região do Recôncavo, que fica em torno de sua capital, Salvador, mesmo que fosse apenas pelo grande número de sua população negra, atraiu a atenção de viajantes que a retrataram em seus relatos como a ‘Roma Negra’ – o maior conglomerado do que eram considerados traços e tradições culturais africanos fora da África. Depois, a partir da virada do século, a Bahia teve um lugar central na pré-história da etnografia da cultura afro-brasileira, através do trabalho de Nina Rodrigues, Manuel Querino e Manuel Bonfim. A partir dos anos 30 ela também teve posição fulcral na formação da moderna antropologia afro-americana (cf. Ramos, 1939; Frazier, 1942; Herskovits, 1943).

Inspirados pela busca de ‘africanismos’ no Novo Mundo, vários antropólogos e sociólogos (Herskovits, 1941; Pierson, 1942; Verger, 1957 e 1968; Bastide, 1967) consideraram o Brasil, e em especial o litoral do Estado da Bahia, como uma das áreas nas quais a cultura negra manteve os traços africanos num grau maior do que em qualquer outro lugar. Não foi à toa que foi em solo baiano que o debate entre sociólogos e antropólogos sobre a origem da cultura negra se iniciou nos anos 30 – será que a cultura negra contemporânea é uma sobrevivência africana ou uma adaptação criativa à opressão e ao racismo? Na verdade, a Bahia tem sido historicamente central não só nos discursos dos intelectuais, mas também nas construções populares sobre a ‘África’ e os ‘africanismos’ no Brasil.

Nos tempos atuais, por razões analíticas, três períodos podem ser identificados nas relações raciais brasileiras, cada um deles correspondendo a diferentes níveis de desenvolvimento econômico e de integração das populações negras no mercado de trabalho. Entre o fim da escravidão em 1888 e os anos 20 o emprego no setor industrial foi mínimo e, também por conta da imigração massiva vinda da Europa, que na verdade veio também para substituir os antigos escravos, de forma geral, o mercado de trabalho permitia pouca mobilidade social para os negros. As relações raciais eram determinadas por uma sociedade que era altamente hierárquica, em termos tanto de cor como de classe (Bacelar, 1993). Os indivíduos negros, que eram em sua maioria pertencentes às classes mais baixas, ‘sabiam o seu lugar’ e a elite, que era quase inteiramente branca, podia manter suas posições facilmente, sem se sentir ameaçada (Azevedo, 1966).

O segundo período vai da ditadura populista de Getúlio Vargas nos anos 30 até o fim do regime militar de direita, no final dos anos 70. Nos anos 30, pela primeira vez se abriram oportunidades em larga escala para a população negra na área formal do mercado de trabalho, principalmente no setor público. O regime autoritário e populista de Getúlio Vargas limitou a imigração e favoreceu a força de trabalho ‘nacional’ como parte de seu projeto de modernização. Um segundo impulso importante para a integração da população negra veio no período entre a metade dos anos 50 e meados dos anos 70. Um período caracterizado por um governo populista e depois pelo golpe militar de 1964, um regime autoritário que promoveu um crescimento econômico promovido pelo Estado dentro de uma economia de substituição de importações. Agora também os empregos do setor industrial estavam abertos aos negros. Nunca tantos negros haviam conseguido um emprego formal com chances de mobilidade social. De 1964 a 1983, o Brasil foi governado por uma Junta Militar que reprimiu os direitos civis e desencorajou a organização dos negros. Apesar disso, a década que vai do início dos anos 70 até o início dos 80, que correspondeu a um afrouxamento do poder militar, foi um período de crescimento e de criatividade para as organizações negras e a cultura negra. Os novos trabalhadores negros demonstraram interesse na questão do orgulho negro e nas organizações negras (Agier, 1990, 1992). Há duas razões para isso. Por um lado, através de sua mobilidade social ascendente, uma nova geração de trabalhadores negros se defrontou com barreiras de cor que não havia percebido antes. Por outro lado, estes trabalhadores negros tinham mais dinheiro e tempo para despender organizando a comunidade e usufruindo atividades de lazer. Novos movimentos negros e associações carnavalescas exclusivamente negras se formaram. A cultura e a religião negras adquiriram maior reconhecimento oficial. Em particular, novas formas de cultura negra baiana foram criadas. A mídia rotulou este processo de ‘reafricanização da Bahia’ (Bacelar, 1989; Agier, 1990 e 1992; Sansone, 1993).

O terceiro período vai da redemocratização, no início dos anos 80, até hoje. Durante estes anos, a recessão, combinada com a democratização e uma rápida ‘modernização’, levaram a um misto de novos sonhos e frustrações. Muitos dos canais de mobilidade social que haviam sido importantes para a geração anterior não eram mais relevantes para a geração mais jovem. Por exemplo, as oportunidades em antigos trabalhos manuais, mas também na indústria pesada e mesmo em alguns setores do emprego público diminuíram, e o valor dos salários baixou, contribuindo para diminuir o anterior status destes empregos, que era relativamente alto. Além disso, novas formas de segregação – normalmente sutis e nunca explicitamente baseadas na cor – emergiram em alguns dos setores emergentes setores do mercado de trabalho, tais como os luxuosos shopping centers, onde os requisitos de “boa aparência” e de “boas maneiras” para o emprego tendem a discriminar os candidatos mais escuros (da Silva, 1993; Guimarães, 1993). Neste meio tempo, outras mudanças levaram a um aumento de expectativas quanto ao nível de vida. No Brasil, assim como em muitos outros países do Terceiro Mundo, a escolaridade em massa, juntamente com a mídia, contribuíram para uma revolução nas esperanças das populações. Outro importante fator é a abertura do país às mercadorias, ideias, sons e culturas internacionais. Após séculos nos quais apenas uma pequena elite tinha acesso aos bens estrangeiros, o Brasil está passando do isolamento à participação, entrando na economia mundial como um importante “mercado emergente”, tal como está ampla economia do Terceiro Mundo agora é frequentemente chamada. Antes, por conta das falhas da política de substituição de importações, muitas mercadorias não estavam disponíveis; agora, as mercadorias importadas sem dúvida estão à venda, mas são muito difíceis e caras para a grande maioria dos brasileiros negros. Novos sonhos também resultaram da crescente aceitação das expressões culturais negras por parte do Estado e da cultura oficial. A indústria do lazer também está mais interessada do que nunca na cultura negra. Mais do que nunca, a cultura negra é predominante nas imagens e discursos de brasilidade oficial e comercial e, na Bahia, da baianidade.

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A estrutura do sistema de relações raciais e a terminologia racial, assim como o tipo de racismo e de etnicidade negra, muda durante estes períodos. Cada período corresponde a uma diferente estratégia do Estado e de outras agências, tais como a mídia, diante dos afro-brasileiros, assim como a diferentes ênfases nos discursos nacional e intelectual sobre a textura racial da nação. Não é preciso dizer que cada um dos três períodos também corresponde a diferentes usos da ‘África’. Daqui para frente, analisarei o papel e os discursos de um conjunto de agentes e agências, os intelectuais, o Estado, a liderança negra e a cultura negra popular.

Antes da Abolição, as imagens da escravidão – dominadas por uma combinação de brutalidade e miscigenação que parece ter caracterizado o sistema escravista brasileiro – impressionaram uma longa série de viajantes estrangeiros que descreveram esta sociedade tropical com um misto de desdém e fascínio. A origem africana de tantos escravos e ex-escravos é muitas vezes relatada, assim como a ‘atmosfera africana’ que, aos olhos das testemunhas, dominava nos mercados públicos, nos portos, na música e na dança, nos hábitos culinários e em outros aspectos da vida diária. No entanto, pode-se argumentar que no Brasil a presença de pessoas e traços culturais de origem africana se torna um ‘problema’ para o Estado e seus agentes apenas após a abolição da escravidão. Durante a escravidão, a condição escrava era até mais importante que a aparência física, e a população de origem africana era dividida em escravos, alforriados, nascidos livres e mulatos. Também importante era a divisão entre os nascidos na África e os nascidos no Brasil (crioulos) – aos primeiros eram dadas normalmente as tarefas mais pesadas. Com a abolição da escravidão as coisas mudaram. Após a escravidão, o Brasil nunca conheceu uma segregação racial legal: a aparência física, mais do que a origem africana ou a condição de escravo passou a determinar o status.

Quem definia o que era africano na sociedade brasileira, e construía uma população ‘negra’ não eram mais os viajantes estrangeiros, mas um grupo relativamente novo de ensaístas – pensadores pré-científicos comprometidos com a construção da Nova Nação que se seguiu ao golpe que havia instalado a república em 1889. Como lidar com a África no Brasil era uma questão chave. A modernidade era uma necessidade e tinha de ser alcançada tanto através do branqueamento da população, por via de uma massiva imigração de brancos da Europa como a partir da melhoria geral das condições de saúde da população nativa. Acabou sendo um pouco dos dois, pois nenhuma das duas abordagens conseguiu a hegemonia (2). No entanto, apesar do debate sobre o lugar dos descendentes de africanos na nova nação, tanto o ‘racismo científico’ quanto os sonhos de incorporação da população negra visavam a engenharia biológica: a construção de uma nova ‘raça’ brasileira. Os traços africanos deviam ser removidos da vida das ruas e do mercado público. As cidades brasileiras tinham de parecer ‘europeias’ – não importa que a mortalidade fosse muitas vezes pior que na África. As campanhas de saúde, como, por exemplo, contra a febre amarela, foram seguidas de uma ‘limpeza’ das ‘regiões insalubres’ – frequentemente aquelas associadas a grandes concentrações de descendentes de africanos. As atividades econômicas informais, também associadas aos primeiros africanos livres, tinham de ser banidas dos centros das cidades. A prática do batuque e das religiões sincréticas brasileiras também foi varrida ou limitada – apenas nos anos 40 a obrigação de registrar os terreiros de candomblé na polícia foi suspensa.

Entretanto, ironicamente, é precisamente quando a população nascida na África chega a ser uma pequena percentagem do total da população que os negros brasileiros começam a celebrar sua África de uma forma aberta e organizada – agora um ícone poderoso a ser utilizado para adquirir status no contexto brasileiro (Butler, 1998). A partir da década de 1880, a coroação de reis e rainhas africanos, tradicionalmente uma forma de celebrar um passado suntuoso e a ‘civilização’ africana em face da presente opressão em vários momentos durante a escravidão, se torna o centro dos cortejos carnavalescos. Suprimido das celebrações oficiais do carnaval por seu comportamento supostamente desordeiro – ou seja, pelo fato de tocarem alto seus tambores – no Rio e em Salvador os cidadãos negros formam associações graças às quais podem negociar um lugar valioso com os brancos “donos” do carnaval (Fry, Carrara e Martins-Costa, 1988).

Em Salvador, as duas principais associações carnavalescas que enfatizaram a grandeza da África foram a Embaixada Africana e os Pândegos da África. Para estes negros, a ‘África’ no carnaval não era desordem, mas justo o oposto: uma emocionante e ordeira exibição de mágica e de grandeza dos míticos reinados africanos (Querino, 1955).

A última década do século XIX e a primeira década do século XX também foram períodos nos quais alguns poucos líderes espirituais do candomblé começam a estabelecer contato com a própria África. Eles se beneficiaram do contínuo fluxo de contatos que sempre uniu a Bahia à África Ocidental durante e, em menor extensão, depois do tráfico negreiro. Os núcleos dos antigos escravos brasileiros, que ficavam nas cidades portuárias do Daomé (agora Benin) e da Nigéria (ver Carneiro da Cunha, 1985; Verger, 1968) apoiaram este intercâmbio transoceânico. Tabaco e licor eram trocados por sementes de cola, imagens sagradas e artesanato. De acordo com Matory (1999), é precisamente por volta da virada do século XIX para o XX que a grandeza do povo yorubá começou a ser celebrado internacionalmente, como sendo um povo culto e orgulhoso que resistiu às pressões do colonialismo e tinha uma sofisticada religião própria. Tal idéia de grandeza logo reverberou em todo o mundo afro-latino e, como veremos depois, aparentemente se tornou uma bandeira para aqueles que afirmavam o valor da pureza africana nas culturas negras do Novo Mundo.

Se o expurgo de traços africanos da cultura brasileira e da ‘raça brasileira’ foi a questão central para o primeiro período, o segundo período é caracterizado por um processo que combinou a incorporação de certos aspectos da cultura negra na autoimagem nacional com sua mercantilização e comercialização.

Isto ocorreu ao mesmo tempo que quatro tendências inter-relacionadas: a) a adoção de um mito de origem da população brasileira como parte do discurso oficial sobre a nação. O ‘mito das três raças’ (o índio, o africano e o português) que se misturaram para criar uma raça nova, potencialmente sem cor tem sido celebrada durante as últimas décadas na poesia e na arte de forma geral. Agora ele se torna parte das políticas culturais oficiais e da liturgia do Estado (Damatta, 1987); b) a emergência de uma organização política negra organizada que tentava se organizar nacionalmente, a Frente Negra, que enfatizava medidas universais em favor dos ‘brasileiros de cor’ e o populismo nacionalista (‘em primeiro lugar estão os cidadãos brasileiros’) e minimizava a diferença cultural da população negra – para este objetivo, o passado recente do Brasil era muito mais relevante que um distante passado africano, um continente que estes ativistas negros muitas vezes descreviam como ‘primitivo’; c) a chamada reafricanização da cultura afro-brasileira; d) o apagamento do estigma sobre a cultura negra na área urbana da Bahia a ponto desta se tornar parte da imagem pública do Estado da Bahia. Para os últimos dois pontos contribuíram o Estado, os cientistas sociais – ambos em situação mais poderosa do que no primeiro período – e brasileiros e estrangeiros. Estes agentes operaram através da identificação, dentro da complexidade de traços da cultura afro-brasileira, daqueles aspectos considerados ‘puros’, que supostamente expressassem a contribuição mais sofisticada das nobres culturas africanas para a cultura e a nação brasileiras. A estes traços ‘puros’ foram contrapostos os traços supostamente ‘menos nobres’ e ‘impuros’ que representavam tanto as culturas africanas menos sofisticadas como aspectos que haviam sido corrompidos por um sincretismo exagerado e se identificavam com uma série de ‘forças negativas’ na cultura brasileira, tais como a mentalidade do ‘malandro’, a mágica dos índios ‘civilizados’, o catolicismo popular e, por último, a magia negra africana e não-africana. Nesta dicotomia de influências africanas, o lado bom era associado com o que era  alternativamente definido como culturas ‘yorubá’, ‘nagô’, ‘mina’ ou mesmo ‘sudanesa’, vindas dos escravos deportados da África Ocidental sub-saariana. De acordo com uma longa linhagem de intelectuais, começando no final do século XIX (Nina Rodrigues, 1936), os escravos desta ‘sofisticada’ parte da África eram a grande maioria dos africanos na Bahia e em outras partes do Brasil onde as formas ‘mais puras’ do candomblé emergiram, tais como o Maranhão. Onde o sistema religioso africano se tornou, como se dizia, abastardado, isto tinha a ver com a suposta origem ‘bantu’ dos africanos. Os ‘bantus’ eram frequentemente descritos como rudes e sem nenhuma habilidade particular, se comparados aos ‘yorubá’. Ou seja, eles eram mais fáceis tanto de se submeterem aos senhores de escravos como para combatê-los através da malfadada magia negra. A pesquisa histórica mostra que a idéia de que os ‘yorubá’ eram mais civilizados, mas também mais passíveis de se revoltarem, estava presente na opinião pública e entre os donos de escravos em fins do século XIX. A rebelião dos malês em 1835 em Salvador, que foi encarada como uma conspiração liderada por escravos islâmicos (Reis, 1986), certamente contribuiu para esta reputação. No entanto, foi apenas depois que viajantes estrangeiros relataram o orgulho ‘yorubá’ e seus finos traços em seus escritos, que muitas vezes foram best sellers no Brasil, que tal estereótipo popular ganhou status e se tornou parte da autoimagem da nova nação.

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A pesquisa moderna sobre a origem africana da cultura afro-brasileira começou com uma série de importantes antropólogos e historiadores de primeira linha, tais como Ramos, Freyre, Tannenbaum, Carneiro, Herskovits, Pierson, Elkins, Verger e Bastide (ver Góis Dantas, 1988). Em suas análises, eles normalmente retiravam dos relatos daqueles viajantes e de suas imagens (pinturas e gravuras), e de um número limitado de descrições etnográficas reunidas por volta da virada do século XIX para o XX em sua maioria por Nina Rodrigues e Manuela Querino. Hoje sabemos que tanto os viajantes estrangeiros quanto tais etnógrafos da pré-história da antropologia brasileira eram bastante impressionistas em seus relatos (ver, entre outros, Slenes, 1995, e Vogt e Fry, 1996).

Significativamente, naqueles dias a ênfase nos ‘yorubá’ e a minimização dos ‘bantu’ eram parte de um ávido esforço de fornecer uma imagem positiva do Brasil negro, e particularmente da Afro-Bahia, ao resto do mundo. Na verdade, como muitas vezes acontece no caso da escrita acadêmica sobre fenômenos relacionados à etnicidade e ao nacionalismo (ver, como exemplo, Handler, 1988), os cientistas sociais e seus informantes étnicos, através de diferentes embora convergentes agendas, tendem a fornecer uma imagem similar e igualmente simpática do grupo ou comunidade em questão. Este grupo ou comunidade é, então, descrito como sendo mais coeso, homogêneo e integrado do que seria o caso se a agenda do observador fosse diferente. Além disso, também as agências governamentais federais e locais – com o Ministério da Cultura do Estado Novo na vanguarda – contribuíram para este processo de conferir um status intelectual e a primazia aos ‘yorubá’, expurgando tanto quanto possível o que elas consideravam elementos ’impuros’ e promovendo os outros aspectos da cultura negra que acreditavam ser ‘mais puros’, dignos e civilizados.

É incrível imaginar que tais construções polares relacionadas à presença africana no Brasil com certeza respondiam a uma polaridade interna que é típica de todas as versões de cultura negra no mundo afro-latino e afrocatólico de que tenho notícia (3) – aquela polaridade entre pureza/resistência e manipulação/ subjugação, dois extremos entre os quais os indivíduos negros têm tradicionalmente construído suas estratégias de sobrevivência assim como os discursos sobre elas.

Desde o início dos anos 60 do século XX, os contatos com a África aumentaram bastante. No auge da descolonização, o governo brasileiro – mesmo a ditadura militar que começou em 1964 – passou a desenvolver uma política de presença na África. Mesmo que o Brasil não tivesse tomado parte no movimento dos países não-alinhados, ele queria desenvolver um intercâmbio Sul-Sul, quanto mais não fosse como forma de adquirir uma aceitação internacional maior como grande nação. Foi neste contexto que dois institutos de pesquisa receberam financiamento do governo – pareça ou não um pouco estranho. Primeiro, o Centro de Estudos Africanos e Orientais da Universidade Federal da Bahia – que, também através de seu periódico Afro-Ásia, tinha se tornado uma importante referência institucional na reconstrução científica da ‘África’ na Bahia e no Brasil. Depois, em 1974, o Centro de Estudos Afro-Asiáticos da universidade privada Cândido Mendes, que também publica uma revista, a Estudos Afro-Asiáticos, e tem estimulado o contato com a África, majoritariamente no campo da pesquisa e do treinamento econômicos e socioantropológicos, especialmente com as antigas colônias portuguesas.

A redemocratização do Brasil que começa no início dos anos 80 trouxe uma nova onda étnica e abriu caminho para o desenvolvimento das políticas de identidade dentro de uma sociedade que, por muito tempo, tem conhecido uma poderosa tradição universal. Uma tradição organizada e defendida pelo aparato do Estado, mas também celebrada na arte e na cultura populares através de incontáveis reinterpretações do “mito das três raças”.

Agora os agentes do processo são diferentes. O Governo Federal, afetado por cortes nos gastos públicos e pelas memórias negativas de suas políticas culturais centralizadas e censoras, vai perdendo o poder. Os governos locais, por outro lado, ganham mais espaço, fortalecidos pela descentralização do poder e pela nova legislação. O Estado da Bahia inclui em sua Constituição de 1988 o ensino da História Africana na educação secundária e políticas de promoção de uma imagem multiétnica na propaganda dos órgãos governamentais. Tais novas medidas multiculturalistas criam novas demandas por informação e por símbolos africanos, apesar deles serem muitas vezes peças e pedaços pré-fabricados, essencializados, das culturas africanas e generalizações superficiais sobre o caráter do ‘povo africano’ – tais ocorrências são comuns nas experiências multiculturalistas, mas se tornam mais agudas num país onde a educação pública está em crise. A mídia e o turismo se tornam mais importantes na construção de uma cultura negra moderna. Os cientistas sociais são muito mais numerosos do que no segundo período, começa a haver um certo número de pesquisadores negros (em sua maioria, ainda jovens), mas como indivíduos e profissionais eles são menos politicamente influentes – por conta da popularização das ciências sociais.

A situação cultural também mudou. Por um lado, certamente é mais fácil e mais lucrativo “ser negro” e mostrar o próprio interesse na ‘África’ do que há 30 anos atrás, se não for por mais nada, por conta da aceitação de estilos jovens alternativos, que aumentou sensivelmente (Araújo Pinho 1998) – por exemplo, me disseram que há apenas uma geração atrás os cabelos dos rastas ou dreadlocks teriam sido quase considerados sinais de maluquice. A mídia também – depois de um longo tempo – começou a aceitar o fato de que o Brasil tem uma imensa população negra e marrom. Em certos setores da sociedade se percebe até mesmo uma certa nova negrofilia, que cria um novo espaço para certas formas de negritude estetizada.

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Desta vez, porém, ela não está confinada às vanguardas artísticas e aos intelectuais, como na Paris de antes da Segunda Guerra (Gendron, 1990), mas sim expressa uma inquietação popular pelo exótico e pelo sensual associados aos indivíduos negros produzida dentro de uma sociedade na periferia do Ocidente que quer ser cada vez mais racional. Por outro lado, este período tem assistido a emergência de um novo movimento negro que encara como sua maior tarefa acabar com a idéia de que o Brasil é uma democracia racial. Para estes ativistas, o Brasil que conhece um sistema racial baseado no contínuo de cor, deve ser reinterpretado a partir de uma radical divisão de linhas de cor (negros versus brancos). Além disso, a polaridade “yorubá/bantu” mencionada antes é agora considerada verdadeira pela maioria dos militantes negros, um grande grupo de intelectuais e – na Bahia – acadêmicos, e mesmo pela ala progressista da Igreja Católica, que tenta incorporar a mensagem do orgulho negro incorporando em sua liturgia símbolos associados a um grande “passado africano”. É neste território de transição que uma parte dos militantes negros e dos líderes espirituais do candomblé tem lutado para dessincretizar o sistema religioso afro-brasileiro – expurgando qualquer referência ao catolicismo popular, ao kardecismo e à ‘magia negra’. A ‘África’ tem sido central na afirmação de pureza de um terreiro de candomblé em particular diante de seus terreiros rivais, que comumente são descritos como sendo menos “africanizados”. Para alguns terreiros, muitas vezes aqueles mais visitados por intelectuais e antropólogos, viagens regulares à África, assim como a demonstração pública de objetos (mágicos) trazidos da África tem se tornado uma parte essencial de seu status no altamente competitivo mercado religioso no qual operam (Prandi, 1991, e Gonçalves da Silva, 1995, Capone, 1998).

Concluindo, através dos três períodos mencionados antes, observa-se que a determinação do que é ‘africano’ na maioria dos casos é impressionista. Os objetos, a língua e o ritmo musical são definidos como africanos não através de uma pesquisa cuidadosa, que ainda é rara, e sim muitas vezes por uma associação superficial, por semelhança ou por observação. ‘Parecer africano’ ou ‘soar como africano’ é na verdade o que torna algo ‘africano’ – assim, um grupo de corpulentos homens negros trabalhando na feira central de Salvador (S. Joaquim) torna-a ‘africana’ no comentário de muitos livros de fotos à venda para turistas e para antropólogos em viagem também (4). Neste processo, um específico olhar estrangeiro contribuiu certamente para a construção de um tipo particular de ‘África’ no Brasil. Um bom exemplo foi a forma através da qual Melville Herskovits identificou que certos traços culturais ou hábitos sociais continham graus do que ele chamou de africanismos, e, em tempos mais recentes, a tendência favorável às coisas yorubá do fotógrafo e etnógrafo francês radicado na Bahia, Pierre Verger – algo que nos lembra a preferência de Ruth Benedict pelo apolíneo povo Puebla ao invés do dionisíaco povo Kwakiutl. Nestes casos, tanto Herskovits como Verger nos lembram a preferência de Ruth Benedicts pelo povo apolíneo Puebla em detrimento do povo dionisíaco Kwakiutl.

Outro fator importante é a localização da Bahia, e do Brasil, mais genericamente, no fluxo cultural pelo Atlântico Negro. Além de ser uma atração turística, um dos lugares onde (fortes) emoções tropicais emanam, um lugar que produz imagens e sons que repercutem, por exemplo, no circuito da assim dita música mundial (world music). No entanto, é marginal no que diz respeito à comercialização e ‘enlatamento’ da cultura negra global – se ao menos por ser parte do mundo luso falante e por não possuir dinheiro e know how.

O caso do Brasil e dos transatlânticos fluxes et refluxes das pessoas, mercadorias, símbolos e idéias que unem a América do Sul com a do Norte, a Europa e África, formando o Atlântico Negro, é uma evidência de que não obstante tenha ícones que se tornaram genuinamente globalizados, os significados coletivos que são dados a estes ícones variam bastante a depender do contexto local. O que também demonstra de que tem havido forças “locais” mais poderosas, nas formas como as coisas africanas têm sido classificadas e posicionadas.

Na verdade, a ‘globalização negra’ tem tido efeitos diferenciados em diferentes regiões, a depender da estrutura e oportunidades locais e da posição geral da região no fluxo cultural global. Geralmente, este processo cria novas oportunidades, mas, também produz novas contradições: há barreiras que estão desaparecendo, mas há outras surgindo-as quais, num mundo de expectativas globalizadas, tais como qualidade de vida e direitos civis, podem levar a novas frustrações. Isto leva a um questionamento, a questão se a globalização enfraquece ou fortalece uma colonialidade do pensamento e como esta afeta o relacionamento entre o centro e a periferia dentro do Atlântico Negro. Certamente haverá mudanças devido ao fato de que hoje, mais que nunca, instâncias locais, como cultura negra e etnicidade, tem elos globais que podem superar o estado nação.

O sistema mundo, certamente, provoca a internacionalização do racismo, bem como do antirracismo No entanto, uns importantes graus de variância nacionais e locais ainda podem ser detectados. Quase sempre é apenas uma questão de se procurar e esta será encontrada. As ‘Nações’, concebidas como uma configuração particular e contingente das regras e símbolos étnicos, experimentam o racismo de diferentes formas, embora os ícones étnicos e raciais, como aqueles relacionados aos estereótipos e construções ‘negro’ e ‘branco’ sejam, na verdade, crescentemente globais.

Notas

1. Pesquisa histórica recente tem me alertado que ‘culturas negras’ começaram se formando já na África antes do auge do tráfico transatlântico, através dos primeiros encontros com os missionários católicos e, de qualquer forma, ao longo da costa africana onde os escravos deportados esperavam às vezes anos para cruzar o Oceano. Este processo de construção de uma cultura negra na própria África tem sido documentado no que diz respeito a invenção da nação Yorubá em torno do fim do século XIX, que logo inspirou os descendentes de escravos em Cuba e no Brasil (Lorand Matory 1999), e na África abaixo do Equador, onde certamente se beneficoiu da proximidade entre as línguas da família bantu (John Thornton 1998; Robert Slenes 1995).

2. Trata-se de um ponto ainda controversial entre historiadores, para um perspectiva geral deste debate ver Marcos Chor Maio e Ricardo Ventura Santos eds. 1996.

3. Também no Haiti a cultura negra assim como o panteão do vodu tem utilizado a polaridade Guiné – puro e digno – versus Congo – impuro e menos digno (Guerin Montilus1993), numa forma que lembra da polaridade Yorubá-Bantu no Brasil e em Cuba.

4. Em Salvador, estes livros de fotos são tão procurados pelos turistas que eles são mais caros lá do que no Rio ou em São Paulo.

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