Considerações sobre a identidade negra no Brasil.

Publicado por Revista Paná em

Algumas considerações sobre os processos de supressão e resistência em relação à identidade negra no Brasil.

As vozes que denunciam os impactos dos três séculos de escravidão negra no Brasil são, muitas vezes, silenciadas em nome de uma pretensa harmonia social no país. Por conta disso, a chance de mencionar e esclarecer alguns caminhos históricos percorridos pelos negros brasileiros, no que se refere a sua exclusão e à falta de oportunidades, deve ser sempre aproveitada à exaustão. O acesso a um conhecimento histórico sério, pautado em princípios científicos, me parece ser fundamental para que a questão da identidade negra no Brasil e os aspectos ligados ao racismo sejam observados com mais atenção pela sociedade brasileira.

As considerações que seguem versam sobre alguns mecanismos de exclusão social aos quais os negros foram submetidos, bem como elementos acerca da consolidação de uma resistência contra os discursos hegemônicos que procuram impedir as discussões dessa natureza.

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A presença negra no Brasil foi, explicitamente, considerada degenerativa ao longo da história. Exemplos desse posicionamento podem ser percebidos em vários momentos da história nacional, em diversos aspectos como, por exemplo, na forma de leis. É possível mencionar, que, no século XVII, os negros foram, oficialmente, impedidos de ocupar determinados cargos civis, militares e religiosos. No século XVIII, há registros da proibição de negros e mulatos se vestirem como brancos. E, ainda, na constituição do Brasil, datada de 1824, constava uma lei complementar que proibia negros e leprosos de frequentarem qualquer tipo de escola.

À medida que se aproximava a abolição, percebeu-se cada vez mais que os africanos eram indesejáveis. A substituição racial, implementada pelo incentivo à imigração, deixava claro quem seria recebido com boa-vontade no país. Com isso, o negro foi gradativamente excluído das oportunidades de trabalho no período pós-abolição, e essa situação era justificada através da atribuição de inúmeros termos pejorativos associados aos africanos e seus descendentes, tais como: atraso, barbárie, devassidão, selvageria etc. Assim, embora, por lei, estivessem fora da condição de escravos, os negros foram, durante muito tempo, privados de ocupar espaços efetivos na sociedade brasileira.

No final do século XIX e no início do século XX, o mestiço, fruto das relações interétnicas, passou a ocupar um espaço importante na posição discriminatória contra os negros no Brasil. A mestiçagem foi alçada à condição de fase transitória no processo de branqueamento. Aos poucos, por meio da mestiçagem, os traços biológicos e culturais dos africanos e afro-brasileiros seriam apagados da nossa história. O branqueamento “livraria” as futuras gerações da categoria de inferioridade imposta pela presença maciça do negro por aqui.

Com a chegada da República, o país buscou definir uma identidade nacional e, nesse sentido, as questões referentes à herança negra no Brasil tornaram-se significativas no estabelecimento do que deveria ou não ser a nação. Nesse ponto, alguns autores abandonaram a ideia de branqueamento e passaram a ver, na mestiçagem, uma forma mais simples e abrangente de entender o Brasil. Tal atitude não deixava de conter elementos discriminatórios e racistas, pois, diluindo as características biológicas negras em meio à mestiçagem e ainda, incorporando os elementos culturais afro-brasileiras como símbolos da nação como um todo, o papel do negro na sociedade brasileira assumiria um caráter coadjuvante.

Dessa forma, o chamado “mito da democracia racial” operou de modo a mascarar conflitos, encobrindo preconceitos existentes e afastando os grupos subalternos da possibilidade de tomarem consciência de sua condição excluída e, então, poderem questionar seus direitos e seu espaço. É nesse ponto que a temática do racismo fica cada vez mais soterrada em meio às questões sociais brasileiras.

Ao longo de todo o século XX e início do século XXI, os negros brasileiros, pouco a pouco, com maior ou menor coesão e amplitude, intensificaram a reivindicação por uma democracia que aceitasse a pluralidade étnica e cultural da nossa sociedade, sem desejar o disfarce das contribuições negras, numa condição homogênea que não existe. Tais movimentos e ações têm, desde então, exigido, entre outras coisas, a revisão de um passado histórico que foi negado e adulterado em nome de um discurso dominante, racista e promotor de profundas desigualdades sociais.

A luta dos negros pela construção da cidadania aparece ainda com mais força na participação em revoltas (como a Revolta da Chibata, em 1910), na fundação da Frente Negra Brasileira (em 1931) e do Teatro Experimental Negro (em 1944), além da organização do Movimento das Mulheres Negras (na primeira metade do século XX). Todas essas entidades e manifestações visavam à representatividade da população negra perante a sociedade, reforçando suas preocupações políticas, educacionais, culturais e sociais.

Com o nascimento do Movimento Negro Unificado, na década de 70, a luta contra a discriminação, a superação do racismo na educação, a discussão racial nos partidos de esquerda e a formação de lideranças políticas, entre outros aspectos, tornaram-se prioridades de caráter nacional. O efeito disso está nos progressos observados, por exemplo, em relação à posição do Estado, sob a forma de leis, discutindo e apontando caminhos para a reflexão do papel do negro na sociedade e a importância das contribuições africanas para a construção da nossa nacionalidade. A partir de então, a legislação que versa sobre as questões raciais no Brasil passou a ser intensificada e ampliada.

Assim, consolida-se uma intensa e ininterrupta frente de discussão e resistência consciente da existência de diversos mecanismos em prol da execução de ações que, disfarçadamente ou não, propuseram a supressão da identidade negra no país. É contra estes mecanismos que textos como este se propõem a contribuir, instigando os leitores a procurar, por exemplo, saber mais sobre estes e outros eventos importantes da nossa história.

Cláudia Santos Duarte é professora e Historiadora. Mestra em Processos e Manifestações Culturais. Vinculada ao grupo de pesquisa Linguagens e Manifestações Culturais (Universidade Feevale –  Novo Hamburgo/RS).


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